Melo-Docu-Drama: Um G?nero dos Anos 80

Em Reds Beatty n?o deixa de reverenciar Orson Welles, uma das sombra inevitaveis da Nova Hollywood

16/09/2023 02:19 Por Eron Duarte Fagundes
Melo-Docu-Drama: Um G?nero dos Anos 80

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A cinebiografia do jornalista americano John Reed — Reds (1981)— tem o brilho das grandes produções de Hollywood no início da década de 80. Warren Beatty, que dirige o filme, pertenceu à geração da Nova Hollywood que, sem deixar de reverenciar o estilo clássico de filmar à americana, buscava apresentar algumas novidades formais que, para o padrão da indústria, pareciam ousadas na maneira de encarar o público. No começo de seu livro Afinal, quem faz os filmes (1997) o cineasta Peter Bogdanovich relata um encontro com Beatty numa casa, em Santa Mônica, nos Estados Unidos, onde a conversa tinha um irônico tom nostálgico em torno dos grandes do passado e da efemeridade das glórias no cinema. Em seu tempo Reds foi um sucesso de crítica e de público. Suas virtudes quase naturais, a despeito da megalomania duma superprodução: uma narrativa clássica sem atropelo, o charme dos atores centrais (Warren Beatty e Diane Keaton, no auge de seus recursos), a beleza visual a partir da fotografia do italiano Vittorio Storaro (responsável pelos engenhos de O último tango em Paris, 1972, do italiano Bernardo Bertolucci, e pela plástica deslumbrante de Apocalypse now, 1979, do americano Francis Ford Coppola). Seus problemas: transformar a realidade política num melodrama fácil; simplificar as questões dialéticas entre o mundo capitalista e o comunista; ingenuidades de construção ficcional.

Beatty acalentava o sonho de cinebiografar Reed já havia alguns anos. Mas a ambição do projeto perturbava a indústria. É certo que Beatty foi um ator de prestígio da Nova Hollywood (Bonnie & Clyde, 1967, do americano Arthur Penn), e Diane Keaton estava em alta no cinema americano dos anos 70 e 80. Mas Beatty não dirigira nada ainda quando surgiu a ideia de Reds: produtores cinematográficos por via de regra não gostam de incógnitas, o risco capitalista não é seu forte. Então Beatty fez um melodrama, O céu pode esperar (1978), que fez sucesso; concluíram que o ator sabia também dirigir. E aí nasceu Reds, politicamente ambíguo, mas de tranquila aceitação pública.

Em Reds Beatty não deixa de reverenciar Orson Welles, uma das sombra inevitáveis da Nova Hollywood. A ficção biográfica, narrada com brilho convencional por Beatty, é, aqui e ali, interseccionada por depoimentos de figuras reais, todas criaturas muito velhas, que teriam privado com Reed em algum momento, entre estas criaturas nomes conhecidos como o escritor Henry Miller; mas é bem possível que o espectador não reconheça fisicamente estas pessoas e aí se torna uma inserção semidocumental ao modo de Welles. Esta breve ousadia estilística fez com que se desse Reds como a vertente hollywoodiana de um gênero que na década de 80 o realizador alemão Volker Schlöndorff identificou como “melo-docu-drama”, a partir do próprio filme de Schlöndorff na época, Die Fälschung (1981), exibido no Brasil ali por 1984 com o título de O ocaso de um povo. Numa matéria publicada no jornal Folha da Tarde (Porto Alegre) de 15 de março de 1982, o crítico Tuio Becker fala desta tendência de muitos filmes de então, onde o público, sem abandonar as facilidades industriais, era convidado à reflexão da realidade. O rol de títulos já indica o quão diferentes são os filmes catalogados sob o índice: Os anos de chumbo (1981), da alemã Margareth Von Trotta; Desaparecido, um grande mistério (1981), do greco-francês Constantin Costa-Gavras, A pele (1981), da italiana Liliana Cavani. E se poderia acrescentar outro filme que não consta da lista de Tuio: O ano que vivemos em perigo (1982), do australiano Peter Weir. Tuio anota: “Em sua maioria, os melo-docu-dramas envolvem a figura de jornalistas.” Pode ser o vago desparecido do filme de Gavras (um repórter independente no sombrio Chile de Pinochet), o sujeito que testemunha a Beirute destruída no filme de Schlöndorff, a irmã que investiga a morte de sua irmã terrorista em Os anos de chumbo, o repórter australiano que vive os dramas da Indonésia nos anos 60 na obra de Weir. Talvez Reds esteja mais próximo do filme de Weir em tentar fundir o melodrama com o político, em seus desvios. Mas a correlação entre todos estes filmes-gênero é precária: o rigor germânico da Von Trotta, a lucidez formal de Schlöndorff, as tensões emocionais de Gavras, as formas mais dispersas de Weir e os aparatos hollywoodianos de Beatty se aproximam (a figura do jornalista, observa Tuio, é quase uma constante) e mais se afastam quando parecem aproximar-se.

Rever Reds, décadas depois, permite reencontrar os engenhos e os disparates duma teoria, às vezes forçada, dum melo-docu-drama conforme os conceitos de Volker Schlöndorff naqueles anos.

P.S.: John Reed foi objeto de outro filme: Reed, Méxio insurgente (1973), do mexicano Paul Leduc. Enquanto o filme de Beatty se concentra na Revolução Russa de 1917 e nas relações entre Reed e sua companheira também jornalista Louise Bryant, Leduc vê a atuação de Reed na Revolução Mexicana, a queda do ditador Porfirio Diaz, as lutas camponesas. Mas são narrativas fílmicas que se opõem. Reds é um espetáculo ao modo industrial: apesar de outras ambições. Reed, México insurgente é mais rudemente documental: Leduc, a seu modo, desdenha qualquer lastro do cinema comercial.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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