Para Recordar o Cinema dos Anos 70
O cinema dos anos 70 é bastante superior ao praticado nos anos 90 e neste início de milênio. A frase é nostálgica, pode parecer reacionária e autoritária, mas de maneira alguma este analista gostaria de vê-la como algo indubitável, é só a expressão de um sentimento diante da visão de Índia song (1974)
O cinema dos anos 70 é bastante superior ao praticado nos anos 90 e neste início de milênio. A frase é nostálgica, pode parecer reacionária e autoritária, mas de maneira alguma este analista gostaria de vê-la como algo indubitável, é só a expressão de um sentimento diante da visão de Índia song (1974), obra-prima realizada pela escritora e cineasta francesa Marguerite Duras trazida à luz da tela da Sala Paulo Fontoura Gastal. Talvez a oração inicial deste texto seja estúpida e parcial, pois foi nos anos 70 que ensaiei meus primeiros de espectador crítico de cinema, e a “infância”, sabe-se, é sempre a melhor época; mas um filme tão bom quanto este da Duras merece que se corra o risco de todos os ataques para defendê-lo hiperbolicamente.
Duras é antes de tudo uma mulher de palavras: escreve livros. Aprecia brilhar pelo texto. Sua contribuição cinematográfica mais conhecida são as frases que ofereceu ao cineasta francês Alain Resnais para rodar um dos trabalhos mais revolucionários da história do cinema, Hiroshima, meu amor (1959). Em anos recentes, outro gaulês Jean-Jacques Annaud, levou à tela um dos romances da Duras, O amante (filme de 1992): Annaud é demasiado convencional para o universo experimentador da escritora. Em 1981 Duras, escritora-cineasta, provocou: “O cinema nada mais é do que uma armadilha; apenas a coisa escrita permanece. O filme é um fenômeno secundário.” Pauline Kael, mente demasiado americana para entender certas sutilezas francesas, debochou do filme de Resnais e da verborragia recitativa emitida pela Duras: “Jamais entendi por que os escritores acham que a repetição cria uma atmosfera lírica ou aumenta a profundidade do significado. Minha reação é simplesmente: ‘Tudo bem, já entendi da primeira vez, vamos em frente com isso.’”
A incompreensão da ensaísta norte-americana, sagaz e mordaz, é o trampolim para que este comentarista se volte para os motivos do fascínio que se pode experimentar diante de Índia song. O plano que abre a narrativa é um plano geral fixo de um pôr-do-sol indiano enquanto as frases rolam na tela ditas por uma voz-over: o plano (igualmente um plano-sequência) dura cerca de três minutos, e todos os planos que são montados ao longo de duas horas de projeção são tão ou mais lentos e exasperantes do que este plano de abertura. A primeira cena em que um indivíduo humano aparece vai ocorrer perto de dez minutos depois de começado o filme. E os indivíduos humanos que surgem são mais peças de cenário do que personagens: vagam pela ambientação como sonâmbulos, encaixam-se na forma abstrata de todo o filme. O inconformismo formal da Duras é típico da década de 70; sua radicalização de filmar deslumbra pela intensa capacidade de jogar com a percepção do espectador.
Numa realização francesa recente, Swimming pool (2003), o cineasta François Ozon no final trocou a personagem de físico (mudou a atriz que interpretava o ser de ficção) para brincar com os níveis de nossa percepção cinematográfica. Em Índia song a Duras é muito mais complexa que os superficiais de hoje: cada plano é um exemplo, mas aquela utilização de um espelho numa sala em que se passa a maior parte do filme, fazendo-nos ver a coisa e a imagem refletida de maneira multifacetada, é tão rica em signos fílmicos quanto os espelhos utilizados como elementos de linguagem em Effie Briest (1974), do alemão Rainer Werner Fassbinder, outro evento daqueles anos que a desmemória de hoje prefere deixar nos subterrâneos para dar passagem de novidade a velhos truques.
Índia song apresenta imagens ao mesmo tempo despojadas e prolixas. Há um despojamento de construção da imagem e de utilização de cenários: uma sala quase vazia mostrada parte pela câmara, parte pelo espelho, uma mesa com abajur, incenso e alguns adereços, luminárias mortiças, a escada ao fundo que vemos somente no espelho. Ao lado deste despojamento há uma prolixidade que vem do fato de a imagem esticar-se como um elástico, depois rodopiando em torno de si como um pião: a imagem-pião que a Duras radicaliza ainda mais que nos primeiros filmes de Resnais, cuja sombra paira sobre Índia song, de onde vem o conceito de filme-objeto semelhante àquele de O ano passado em Marienbad (1961), a mais radical experimentação estilística de Resnais.
A cineasta faz misérias com a voz-over. Num primeiro momento é uma narração onisciente de diversas vozes impessoais que contracenam com as imagens do filme. Lá pelas tantas parecem diálogos das criaturas em cena: mas a voz permanece off (sua origem é fora do quadro) e sua função não se desliga da frase-over (aquela que narra indiretamente a possível história). A cineasta complexifica todo este já complicado procedimento de vozes, perturbando e inquietando o observador. Seria mesmo o filme um fenômeno secundário como afirmou a escritora-cineasta? Não parece, diante do minucioso rigor formal de Índia song.
A narrativa vai fechar-se com a ziguezagueante panorâmica sobre um mapa da Índia. Repensando o extremado formalismo desta realização francesa, observo que, a despeito de toda a abstração que nubla seu conteúdo, Índia song capta o espírito de um país assolado pela miséria dos nativos: o texto fala em lepra do coração, referindo-se a dois atentados, o espiritual e o material.
Dizem que em seus trabalhos posteriores a cineasta se teria perdido numa tagarelice enfadonha. Mas Índia song salva-se disto graças à mestria de uma cabeça por trás da câmara capaz de gerar imagens que só a década de 70 soube jogar numa tela.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br