O Cinema Frances no Espelho

O cineasta frances Olivier Assayas vai as origens do cinema de seu pais para homenagear o proprio cinema

14/10/2022 02:04 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema Frances no Espelho

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Em Irma Vep (Irma Vep; 1996) o cineasta francês Olivier Assayas vai às origens do cinema de seu país para homenagear o próprio cinema. A realização de Assayas gira em torno do cinema mesmo: muito da cozinha cinematográfica e das inquietações das variadas pessoas às voltas com a produção de filmes transita diante da câmara leve e também solta com que Assayas cria suas imagens em movimento. A trama de Irma Vep põe em cena um realizador, René Vidal, de irrequieto temperamento artístico, que se dispõe a refilmar Les vampires (1915), um clássico do cinema francês realizado por Louis Feuillade.

O desempenho de Jean-Pierre Léaud no papel do diretor do filme dentro do filme simula tédio, existencialismo, incômodo; sabemos que Léaud viveu um diretor de cinema em O último tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, mas aí era uma outra coisa, um artista mais infantil e trêfego, algo bastante paródico. René/Léaud chega a determinado momento das filmagens esgotado mentalmente, o que o leva a um colapso nervoso e o faz desaparecer do local; misturando a crise de criatividade doentia do diretor de cinema que Federico Fellini criou em Oito e meio (1963) com a situação de um diretor que desaparece em O estado das coisas (1963), de Wim Wenders, Assayas monta sua parábola fílmica à maneira bem francesa. E a dicotomia que sempre perturbou os franceses volta em certas partes dos diálogos: o cinema francês como intelectual contraposto ao cinema feito para o grande público, um cinema que privilegia a ação física (John Woo é referido então), uma personagem contraponto ao cineasta ensimesmado de Léaud deita falatório diante da personagem de Maggie Cheung (que vive a si mesma), no filme dada como uma atriz chinesa de Hong-Kong que, cansada do cinema comercial de violência de seu país, parte para a França em busca de outro fazer cinematográfico. E encontra em René o receptáculo: ele, cansado de francesas para os papéis, vê numa atriz oriental um diferencial para recriar Irma Vep.

Este cruzamento entre os diversos estratos de ver filme é obsessão de Assayas em vários trabalhos e chegou a seu grande momento em Acima das nuvens (2014), onde ele logrou o milagre de fundir modos de achar a encenação tão diversos caracterizados desde a utilização das intérpretes centrais, Juliette Binoche, Kristen Stewart e Chloë Grace Moretz.

 

O EXORCISMO CINEMATOGRÁFICO DE OLIVIER ASSAYAS

 

 

A série televisiva Irma Vep (2022) é uma adaptação, para uma narrativa longa em oito episódios, da realização homônima lançada nos cinemas em 1996. Quem roda a série é o mesmo diretor do filme, o francês Olivier Assayas. Dispondo agora duma metragem bastante maior para expor em imagens e sons suas ideias, Assayas transborda: a complexidade das inquietações de artista do cineasta, que no antigo filme se espremiam em obscuros recantos estéticos onde as elipses construíam o fascínio, acaba por divagar às vezes sem rumo nos excessos fílmicos da série. A grandiloquência do bacanal de formas de Irma Vep, a série, tem momentos estilisticamente grandiosos e outros menos fortes cinematograficamente, mas em momento algum o encanto geral com o universo montado por Assayas deixa de habitar o espectador. Se o observador pudesse fundir as qualidades do filme de 1996 (seu rigor denso) com as da atual série (seus delírios constantes), eliminando os defeitos de um (a obscuridade truncada) e de outro (caldos que aqui e ali entornam), talvez se tivesse a obra-prima a que as tensões narrativas de Assayas aspiravam; como estão, o filme de 96 e a série de 22 são obras características do cinema deste diretor francês cuja excelência hipnótica está sempre a um passo do majestoso e da catacumba.

A série segue, em princípio, o mesmo esquema dramatúrgico do filme em que se inspirou. Um diretor francês está refilmando Les vampires (1915), clássico de Louis Feuillade. E é em torno da cozinha cinematográfica, com o diretor, atores, produtores que a narrativa se move. As relações sentimentais, sexuais ou simplesmente amicais entre as pessoas envolvidas na produção são observadas pelo roteiro como fontes para o próprio resultado final da realização dentro da realização, do Irma Vep dirigido pelo ficcional René Vidal que se mexe dentro do Irma Vep que vemos na tela e é realizado por Assayas. Na dupla central de intérpretes, dados que interferem em algumas diferenças centrais entre o filme de 96 e a série de 22. Vincent Macaigne é agora René; se Jean-Pierre Léaud dava um toque de existencialismo sombrio à personagem no filme da década de 90, Macaigne, trêfego e às vezes inseguro, adiciona agora outros registros. A sueca Alicia Vikander, vivendo uma atriz sueca que trabalha no cinema americano (a personagem Mira é um espelho da própria Alicia), é mais gordurosa em sua excitação que o distanciamento da chinesa Maggie Cheung no filme de 96, época em que Cheung mantinha um relacionamento com o diretor Assayas.

A grande extensão duma série permite ao cineasta elaborar de maneira mais tensamente abrangente a superposição de camadas em sua narrativa. A camada que gerencia todas as camadas é a metalinguagem. Em vários momentos de Irma Vep, a série de Assayas, fala de si mesma: por viés. Especialmente quando o diretor dentro do filme (René) conversa com sua terapeuta. Mas não só. A utilização duma atriz chinesa que fala de um antigo filme com René, conversando com a atual atriz da série, a sueca americanizada, remete a evocações do próprio Assayas em torno de sua passagem do filme à série; a atriz atual diz que é uma atriz sueca que se está transformando numa atriz americana (a própria Alicia?) e que se sente apropriando culturalmente de alguém ou de algumas coisas, pois a personagem original (de 1996) era chinesa, no que a  chinesa lembra que a original mesmo não era chinesa, era uma francesa de 1915. A complexidade é tão sutil quanto perplexa e necessariamente difusa: transborda, exagera, sai do tom, mas hipnotiza a nossa mente cinematográfica.

Filme defeituoso como uma pulsão viva, este Irma Vep em oito episódios se define um pouco já numa fala no primeiro dos capítulos: “O fantasma de Irma Vep vem assombrando o cinema desde então.” É um tributo de Olivier Assayas a seu antecessor Louis Feuillade. Sem subserviência. A série em alguns instantes se converte numa espécie de diário de sua própria filmagem, o que faz nova sublinha no processo em camadas. Para além das referências cinematográficas evidentes (de Oito e meio, 1963, de Federico Fellini, a O estado das coisas, 1982, de Wim Wenders), como já se dava no filme de 96, aqui a amplitude das formulações do cineasta pela disposição de horas duma série remete aos excessivos cruzamentos do romancista francês André Gide para Os moedeiros falsos (1925), e à ironia crítica que lhe dedicou o crítico inglês E.M. Forster, considerando que o ficcionista francês é demasiado solene em relação a toda a miscelânea. Pode-se dizer que Assayas, em muitas passagens, é lúcido e autorreferente sobre a defasagem que possa existir entre suas preocupações estéticas e o público habitual dos cinemas. Estas coisas tanto se encontram no filme de 96 e em outros filmes dele, Acima das nuvens (2014) e Personal shopper (2016), ambos interpretados por Kristen Stewart, estrela que ele reutiliza na série Irma Vep, em sequências de rara excitação sexual no contraponto entre as ações nos lençóis dos amantes e o ciúme raivoso duma ex-amante do rapaz (justamente a atriz que vive Irma Vep). Apesar dos longos espaços de encenação, Irma Vep mais aponta caminhos que ficam por preencher (no caminho): o que pode significar, daqui a mais tempo, uma nova retomada deste universo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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