A Agonia de uma Imaginacao

Providence eh mais uma intrincada montagem cinematografica do grande realizador Alain Resnais

22/11/2019 03:48 Por Eron Duarte Fagundes
A Agonia de uma Imaginacao

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Providence (1976), o primeiro e único filme rodado em inglês pelo cineasta francês Alain Resnais, traz lá pelas suas imagens iniciais duas citações rápidas e sutis a Cidadão Kane (1941), o clássico dos clássicos do cinema dirigido pelo norte-americano Orson Welles. O primeiro enquadramento de Providence é um obscuro movimento em que a câmara se aproxima duma placa em que se lê “Providence”. O enquadramento que abre o filme de Welles é um movimento em sombras da câmara de onde os olhos do espectador são aproximados para ler numa placa “entrada proibida”. Em Providence um rápido plano escuro da câmara de Resnais capta a tentativa da mão de um velho que tenta firmar-se segurando um copo de vinho mas, vencido pela dor, deixa o copo cair e exclama “maldição, maldição!”. Em Cidadão Kaneo protagonista de Welles deixa escapar de suas mãos (no detalhe obscuro, pela câmara labiríntica e perversa de Welles) um objeto também de cristal e larga sua famosa palavra “Rosebud” (sua maldição?).

Passadas estas ligações iniciais que um gênio-discípulo (Resnais) presta a um gênio-pioneiro (Welles), Providence é mais uma intrincada montagem cinematográfica do grande realizador, que no filme seguinte, Meu tio da América (1980), aclararia seus processos de linguagem. O que ocorre inicialmente em Providence é que Resnais vai despejando uma série de situações fragmentárias onde o observador é novamente seduzido pela locução rebuscada de um texto, no caso o de David Mercer, e pelos cruzamentos estranhos que se dão em cena, mas se move entre as imagens como um cego deslumbrado. De uma certa maneira, isto ocorreria também em Meu tio da América, mas a montagem deste logo se converteria em transparência e translucidez. Providence se ajusta, é claro, nas linhas de sua história, mas a pau e corda, ou a duras penas, para usar pleonasmos e reiterações, como faz o filme de Resnais. O que se passa em Providence, em cerca de dois terços de sua narrativa, é que a história vista pelo assistente é a que se passa na cabeça da personagem central, o romancista Clive Langham; começamos a entender melhor este processo criativo do filme de Resnais à medida que as intervenções de Clive (suas exclamações debochadas cortadas pela dor de sua doença) se repetem e apontam para as imagens que estamos vendo. Clive compõe seu romance final com trechos da vida de seus familiares, o filho, a nora, o amante da nora, outros. Resnais compõe seu filme com as imagens e as frases que estariam na cabeça de Clive.

A terça parte final da narrativa de Providence vai centrar-se na recepção que Clive dá a seus familiares em sua propriedade, culminando com a sequência da refeição à mesa. Há um longo plano circular que sai das personagens à mesa, percorre o bucolismo tenso da paisagem em torno e torna, fechando o círculo, à mesa das personagens. Clive está ali para ver os seus e neles inspirar-se para seu derradeiro livro. Como ocorria com dois homens centrais de outra obra fundamental daqueles anos, 1900 (1976), do italiano Bernardo Bertolucci, o Clive Langham de Providence tem mais ou menos a idade do século; seus 78 anos, comemorados na refeição final, encarnam o século XX, ou o homem deste século, como queria Resnais (o intelectual característico do século XX), assim como Bertolucci queria sedimentar os conflitos sociais da centúria naqueles seus dois seres de 1900.

O que verdadeiramente Resnais conta ao longo de Providence é a agonia de uma mente que está num corpo que já não aguenta bem a força desta mente; a dor aplacada pela bebedeira (anestésica?) dá um tortuoso tom elegíaco a estes derramamentos de imaginação que saem do escritor inventado por Mercer e Resnais. O cineasta francês começa em Welles, mas vai além; uma introspecção européia cortada por aventuras de linguagem cuja raiz americana (Welles) é um tanto quanto nebulosa. A ensaísta norte-americana Pauline Kael tem dificuldades com os floreios intelectuais de Resnais: ela debocha destas alturas e se esforça por descê-las para o subsolo. Já o crítico brasileiro de origem belga Jean-Claude Bernardet escreveu numa novela que Resnais é seu filósofo favorito. Estas duas vertentes críticas situam os parâmetros que cortam ao meio as avaliações sobre o genial realizador de Providence, igualmente um filme que ao longo das décadas tem sido tão endeusado quanto execrado.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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