O Reinado Cinematográfico de Visconti

De tudo o que se viu ao longo de Ludwig forma-se o sentimento forte que emana deste filme impiedosamente belo

16/09/2018 23:19 Por Eron Duarte Fagundes
O Reinado Cinematográfico de Visconti

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Quando o espectador dá com as primeiras imagens de Ludwig, a paixão de um rei (Ludwig; 1972), compreende logo por que este afresco histórico rodado pelo italiano Luchino Visconti é tão longo e tem hoje cerca de quatro horas de duração, isto é, algo mais extenso do que o filme lançado nos cinemas na década de 70, com três horas de projeção que assombrou alguns observadores de então pela minuciosa lentidão imposta pelo cineasta. Tudo é muito vagaroso em cena: um olhar, um deslocamento do ator, uma articulação do quadro cinematográfico como se fosse uma tela pictórica, tudo vai aparecendo sem pressa aos olhos do assistente. A lentidão no filme de Visconti é uma lentidão imposta por seu barroquismo de filmar, onde a exaltação da cor e do cenário vai modulando um estilo de encenação tão grandiloquente quanto plástico; seria absurdo, como fizeram certos analistas diante das primeiras visões de Ludwig, imaginar que o ritmo lento da narrativa fosse uma inaptidão ou erro do realizador; não se pode falar isto de um gênio como Visconti: a contemplação cinematográfica de Ludwig é elaboração formal pura e os anos soterraram todas as reservas que se faziam há trinta anos à beleza impressionante deste filme. O ritmo lento construído por Visconti, como quem quer capturar a personalidade de um ser como o rei Ludwig da Baviera, difere muito da lentidão fílmica de outro italiano, Michelangelo Antonioni; os sombrios silêncios e frases vagas de Antonioni são substituídos em Visconti pelos gritos da cor e das peças da ambientação tanto quanto pelos diálogos espalhados de maneira definitiva ao longo da película.

Pela mesma época em que Visconti se debruçava sobre a figura histórica, o diretor de cinema alemão Hans Jürgen Syberberg fazia um Ludwig, réquiem para um rei virgem (1972), que só passou em sessões especiais no Brasil, promovidas pelo Instituto Goethe do Brasil. O cinema experimental e extravagante de Syberberg também se valia de fundos pictóricos para expor a intimidade do nebuloso rei; mas a estaticidade formal do alemão distanciava-se muito dos exageros de imagens a que Visconti chegou como nunca em sua carreira em Ludwig. Para acentuar a extravagância de sua reconstituição de época e caracterizar a deterioração íntima do soberano louco da Baviera, Visconti arma em parte seus planos como um pintor que pincelasse com a câmara; e uma de suas referências fundamentais é o paisagista alemão do século XIX Caspar David Friedrich, cujas telas foram objeto de um documentário de pintura feito em 1986 pela alemão Peter Schamoni. Como numa obra de Friedrich, em Visconti a personagem afunda-se no plano geral do cenário, perde-se por assim dizer na paisagem, metaforiza a insignificância humana diante dos demais elementos da natureza; os poucos primeiros planos servem principalmente a revelar a decadência mental e física de Ludwig (sua arcada dentária destruída, seu olhar que se enlouquece a cada passo da projeção), mas é a cenografia (sempre uma construção irreal e romantizada) que explode em todos os momentos na tela.

O colorido da fotografia de Armando Nannuzzi exulta em Ludwig, evocando a exacerbação dos quadros de Friedrich. Desde a cena inicial da coroação do jovem rei de dezenove anos, Visconti vai sedimentando seu gosto pela encenação barroca. E o mundo de sonhos do reinado de Ludwig vai favorecer a farta simbologia visual que Visconti lança mão com aguda sutileza. Mas é a partir da metade do filme, com o recrudescimento das loucuras de Ludwig e sua obsessão por edificar castelos, que Visconti leva às últimas consequências seu barroquismo: à medida que crescem a decadência e a insanidade mental da personagem depura-se e refina-se mais ainda a tendência barroca de Visconti, aumentando-se a exuberância dos cenários e da montagem que a câmara faz de todos os ricos elementos cinematográficos em cena.

O curioso é que, mesmo que o estilo de filmar de Visconti pretenda fazer submergir as personagens no meio cinematográfico, o cineasta permite ao ator alemão Helmut Berger seu desempenho mais cheio de nuanças sob Visconti (Berger é um ator essencialmente viscontiano) e não descarta a riqueza de linhas da interpretação de Romy Schneider na pele da imperatriz austríaca Elizabeth, o amor irrealizado do rei que serve de contraponto para o frustrado noivado com Sofie, a irmã de Elizabeth, ambas primas do protagonista.

Sabe-se que o que moveu Visconti a investigar cinematograficamente o íntimo de Ludwig não foi propriamente a necessidade histórica: a História no filme é só um bordado. O que aproximou Visconti de Ludwig foi uma identidade pessoal: aristocrata e efeminado, o rei da Baviera serviu de espelho para o próprio Visconti; mais ainda se aprofunda a questão narcisista de Visconti ao utilizar no papel de Luwig Helmut Berger, com quem Visconti viveu um caso tumultuado e destrutivo. Diferentemente do distanciamento germânico de Syberberg, com seus quadros frios e paralisados, o esteticismo peninsular de Visconti se autorretratava na vida de Ludwig. Igualmente é de observar que a personagem de Richard Wagner dá a Visconti a oportunidade de reflexionar sobre as relações entre a arte e o poder, tão precárias e oblíquas naquele tempo quanto hoje.

Falei da importância da pintura no processo fílmico de Ludwig; mas não se deve esquecer os contornos fundamentais da música, especialmente da música de Wagner (com a inclusão da uma composição inédita), circulando o poder impositivo das imagens viscontianas, tão autoritárias quanto as partituras do compositor, cuja relação profunda e enviesada com o nazismo alemão foi estudada numa obra-prima de Syberberg, o documentário Winifred Wagner (1975). Nestes aspectos, surge uma associação entre Os deuses malditos (1969) e Ludwig: ambos fazem a roda em torno dos fantasmas que geraram o nazismo, tendo no centro desta roda o artista, Wagner ou Visconti. De tudo o que se viu ao longo de Ludwig forma-se o sentimento forte que emana deste filme impiedosamente belo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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