A EMOO DO CINEMA A LINGUAGEM

A ideia estrutural de Jogo de cena translcida, como tudo o que vem da concepo do diretor

02/02/2014 22:56 Da Redação
A EMOÇÃO DO CINEMA É A LINGUAGEM

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Eduardo Coutinho, cineasta brasileiro de documentários, não cansa de surpreender o espectador. Quando se pensa que ele já fez tudo o que seria possível para pôr uma neblina nas fronteiras entre o documentário e a ficção, o realizador vai mais adiante. É o cinema de um mutante. Como escreveu João Moreira Salles no prefácio do livro O documentário de Eduardo Coutinho (2004), de Consuelo Lins: “O cinema de Coutinho é infinitamente maleável e está sob o risco constante de se desmanchar.” Em Jogo de cena (2007) o documentário de Eduardo Coutinho se desmancha de tão maleável. Jogo de cena seria um documentário, está no seu conceito de filmar, mas questiona o processo documental do próprio cineasta. Coutinho se especializou em documentários de entrevistas em que sua capacidade de ouvir e fazer as provocações certas produziriam uma espontaneidade que aparentemente vai edificar o próprio documentário. Em Jogo de cena, apesar da raiz ser a mesma, a espontaneidade se desmancha e o que temos é um documentário construído: uma sutil reflexão documental, um ensaio sobre como a emoção no cinema nasce de sua linguagem.

A ideia estrutural de Jogo de cena é translúcida, como tudo o que vem da concepção do diretor. Parte da vida ou faz o cinema interagir com a vida: como revela o plano inicial da realização, um anúncio de jornal convida mulheres que tenham histórias para contar e queiram participar de um documentário. Mais de oitenta mulheres comparecem no local indicado e Coutinho e seus auxiliares vão escolher pouco mais de vinte para darem seus depoimentos diante das câmaras. Algumas meses depois, Coutinho reúne algumas atrizes (entre elas, alguns rostos conhecidos do público brasileiro, como Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pera) para encenarem as mesmas histórias que as mulheres contam sobre suas vidas. O que complica a distinção entre o autêntico e o encenado é que há intérpretes que não são conhecidas do público. Uma destas histórias —a da mulher que teve seu filho morto num assalto— é contada em cena por duas pessoas, nenhuma delas rosto de intérprete conhecido: de quem é a história? Quem é a atriz? Ou são ambas atrizes e a história foi inventada pelo filme? Insisto: Coutinho faz este intrincado jogo de cena com muita translucidez. Imaginemos Jogo de cena sendo exibido para um público que não conhece as figuras físicas das atrizes no Brasil famosas. Seria possível saber de quem é a história contada? Será que isto interessa mesmo? Ou a repetição de cada história por diferentes personagens (da vida real ou intérpretes) traz cada uma sua emoção específica? Marília Pera não chora, o que difere sua interpretação do depoimento da criatura que ela interpreta; mas não se pode dizer que o desempenho de Marília seja falso, pois não-somente no cinema senão também na vida há quem contenha ou oculte a emoção tornando a situação um transbordamento para dentro. Andréa Beltrão, a atriz, chora, enquanto a mulher que conta sua história (um aborto natural que a desolou) não o faz, transmite sua emoção por outros meios, palavras, gestos, entonação de voz; e Andréa jura para Coutinho que não preparou o choro, foi espontâneo, nasceu da leitura do texto. Marília revelaria mais adiante que tinha um ingrediente para lágrimas caso Coutinho instasse com ela para chorar.

Parece que não são as histórias que nos emocionam, mas o discurso cinematográfico. Este discurso se desvincula do próprio ator, seja este profissional ou um amador que se ficciona a si mesmo. De onde vem este discurso? Da direção de cinema. Ouvimos a mesma história mais de uma vez, mas não é a mesma história. E quando estas aparentes mesmas histórias são alternadas na tela simultaneamente e em ritmo saltitante, o que temos é uma só história que é pura linguagem: a linguagem da interpretação, as interpretações inseridas num determinado discurso são na verdade a história que se está contando.

Se Santiago (2007), de João Moreira Salles, fita o umbigo do cineasta para neles tentar espelhar o lado de fora do cinema, Jogo de cena olha para o lado de fora do cinema (as pessoas que contam histórias para o cineasta-entrevistador Coutinho) para tornar ao umbigo do cineasta e suas encucações especificamente cinematográficas. Este processo de Coutinho, que inverte o processo de seu gêmeo fílmico Moreira Salles, talvez possa explicar esta aparente violência estética que Coutinho utiliza contra si mesmo e seu projeto de filmar: utilizar intérpretes muito conhecidas do público e desnudar suas elaborações diante das câmaras. Assim, mesmo que a idéia estrutural se ponha inicialmente com simplicidade, Jogo de cena é uma obra cinematográfica tão ou mais difícil de ser bem percebida numa primeira visão quanto Império dos sonhos (2006), do norte-americano David Lynch. Jogo de cena é um documentário? Provisoriamente podemos chamar-lhe assim. Na essência não o é. Uma ficção? Também não. Uma mistura dos dois, ficção e documentário? Não chega a ser. Um autêntico filme-esfinge que desafia os habituais conceitos cinematográficos do espectador.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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