Quatro Homens em Conflito

Os Imperdoáveis se candidatou a clássico já em seu lançamento. Hoje sua fama se consolidou e é provavelmente a grande obra de Clint Eastwood

24/10/2016 09:32 Por Marcus Pacheco
Quatro Homens em Conflito

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Creio que grande parte de críticos, especialistas ou simplesmente admiradores do gênero coloque No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, como o mais importante dos marcos iniciais dos filmes de faroeste. Isso se deve ao fato do filme ter trazido diversas características reproduzidas à exaustão nas obras sucessoras; estrutura narrativa, direção e operação de câmera, e principalmente conceitos chave na criação de personagens. Por mais de vinte anos os faroestes fizeram sucesso numa Hollywood de belos atores e atrizes, perfeitos de todos os modos.

Com o passar do tempo o interesse do público diminuiu e o gênero foi se restabelecer apenas na geração do western spaghetti, essa já focando em heróis de moralidade duvidosa. Nesse momento surgiu um novo galã. Clint Eastwood fazia o homem sem nome, meio bandido meio mocinho, ora estava no jogo para defender inocentes, ora apenas para fazer dinheiro enganando os outros. O último suspiro, muito elegante, aliás, dos westerns. Depois disso, apenas remakes que não marcaram e um ou outro lançamento sem grande importância. Clint Eastwood foi o último verdadeiro pistoleiro.

Pois bem, se No Tempo das Diligências é o marco inicial do faroeste e os western spaghetti de Sergio Leone o marco final, Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992), de Clint Eastwood, é o epílogo. Digo isso pois Os Imperdoáveis subverte toda a ótica do cinema de faroeste. Depois de anos sem grandes obras no gênero, no começo da década de 1990, Eastwood se voltou novamente ao gênero para produzir um filme que desconstrói todas as máximas consolidadas nele. Seguindo a própria premissa de Os Imperdoáveis, é como se Eastwood fosse o anterior fora da lei durão que agora se tornou o velho sábio, que olha para o passado e retoca uma visão mais simplista que se tinha do mundo.

Os Imperdoáveis já começa em tom de epílogo; seu protagonista é William “Bill” Munny (Clint Eastwood) um ex-bandido, daqueles famosos sanguinários, que nos faroestes dos anos 40 seria o vilão ideal. Agora velho, ele vive sozinho com os dois filhos pequenos numa casa no meio do nada. Aqui temos a primeira quebra de paradigma de protagonista. William é devoto a sua falecida esposa, a quem ele fala e considera como uma santa, por tê-lo tirado do mau caminho da violência e vícios. William é um homem recuperado, tratando a si mesmo como produto de um milagre.

A escolha de começar a obra contando por meio de texto a história precedente da esposa de William demonstra que o foco da vida dele está justamente na falecida esposa. O texto todo nos apresenta o William de antes dela, caracterizado como sanguinário e temperamental, justamente o oposto do velho William que conhecemos nos minutos seguintes de filme.

A sua pacata vida tem uma reviravolta quando o jovem pistoleiro Schofield Kid (Jaimz Woolvett) chega a seu rancho à procura do famoso matador William. Ao se deparar com o velho, mesmo assim insiste para que eles sigam juntos atrás de uma recompensa oferecida em uma cidade perto dali. O prêmio será dado a quem matar dois homens que desfiguraram uma prostituta. Primeiro o velho aparenta desinteresse no caso, porém depois resolve reencontrar seu ex-parceiro Ned Logan (Morgan Freeman) para seguirem com o jovem até à cidade. Mesmo assim, William não demonstra uma motivação clara para fazer justiça com as próprias mãos. Ele alega a Ned que vai investir o dinheiro da recompensa na educação dos filhos, mas menciona isso depois de muito tempo, com um desinteresse latente, como se falasse de algo sem importância. A real motivação de William parece estar muito mais ligada a punir o antigo Willian, o desprezível beberrão que provavelmente teria desfigurado o rosto de uma prostituta caso isso tivesse lhe passado pela cabeça.

Voltando a uma das primeiras cenas, quando os dois homens desfiguram uma prostituta acusando-a de um roubou que ela não cometeu, os direitos das mulheres na época são postos a contraprova. Nos filmes do gênero somos acostumados a vê-las retratadas como figuras delicadas mas respeitadas por todos, menos pelos vilões. Aqui as prostitutas são tremendamente destratadas por todos – convenhamos que esse é um recorte muito mais próximo da realidade da época –, tratadas como simples mercadoria pelo dono do bordel e como qualquer coisa pelo xerife local, Little Bill (Gene Hackman). Muito mais frio e cruel do que os xerifes aos quais estamos acostumados, Little Bill fixa uma multa aos contraventores, que devem apenas conseguir cavalos para o dono do bordel pelo prejuízo que lhe deram, ao tornarem uma de suas prostitutas inaptas ao trabalho. O senso de justiça do filme se mostra tremendamente deturpado nesse momento, pois o crime é pago ao “dono” da prostituta, a justiça é feita a ele, não à mulher, a verdadeira vítima.

Nesse momento a figura do xerife se transforma no antagonista do filme. A autoridade que passa a agir com violência para proteger os dois contraventores que tiveram a cabeça posta à prêmio pelas prostitutas, espanca forasteiros que passam por ali em busca da recompensa. Temos aqui uma participação rápida mas de destaque de Richard Harris, interpretando um famoso bandido estrangeiro, o English Bob. Após ser humilhantemente expulso da cidade por Little Bill, o inglês deixa para trás Beauchamp (Saul Rubinek), um escritor que o acompanhava fazendo sua biografia. Conversando com o xerife, que há tempos conhecia English Bob, Beauchamp descobre que grande parte da fama do inglês é provinda de lendas que ele mesmo inventou, ou de histórias aumentadas.

A desconstrução do vilão, da grande lenda do oeste, é desmistificada na grande cena na delegacia onde o escritor conversa com Little Bill e ele conta a verdadeira versão do que aconteceu quando English Bob matou um de seus famosos inimigos. Os fatos, muito mais permeados por acaso e sorte do que heroísmo, desconstroem a versão de English Bob. Little Bill ainda prossegue destruindo a versão romantizada e cheia de lirismo que o escritor tem do confronto de grandes pistoleiros.

O xerife fala que ser rápido no gatilho é bom, mas não o mais importante, pois se o pistoleiro não tiver sangue frio, cometerá erros e dará a oportunidade do adversário lhe matar. Beauchamp ouve tudo com incredulidade inicial, mas convencimento posterior, ele faz o papel do espectador que cresceu vendo faroestes onde o mais rápido sempre vencia e nunca cometia erros, uma figura inumana e perfeita.

Como que para justificar a teoria de Little Bill, em todas as cenas de tiroteio de Os Imperdoáveis, os personagens erram constantemente os tiros, são lentos e têm medo. William erra vários disparos antes de matar o primeiro dos dois contraventores com um tiro mal dado na barriga. O homem morre em desespero enquanto se arrasta no chão. O outro bandido é morto por Schofield Kid enquanto está no banheiro defecando, de calças arriadas e implorando pela vida. O jovem titubeia antes de matar o homem com três tiros.

Todos os protagonistas são imperfeitos, William tem dificuldades em montar no cavalo, Schofield é praticamente cego e não consegue enxergar a mais de 50 metros de distância e Ned, no meio da missão, quando precisa matar um homem, desiste de tudo para voltar para casa. Os homens que antes eram exímios atiradores, se tornaram velhos que ficam doentes depois de uma tempestade e sentem falta do colchão de casa.

O tiroteio final, quando William volta para vingar a morte do amigo, faz lembrar a famosa cena derradeira de Três Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto, il Cattivo, 1966), com um duelo envolvendo vários personagens. Com um clímax mais curto e direto, porém de execução mais lenta e atabalhoada, Eastwood mostra que o acaso pode decidir as coisas e sorte ou azar fazem mais diferença do que a rapidez e habilidade.

Carregando todas essas qualidades corajosas, que o diferencia dos clássicos predecessores, Os Imperdoáveis se candidatou a clássico já em seu lançamento. Hoje sua fama se consolidou e é provavelmente a grande obra de Clint Eastwood. Justamente por ir no caminho contrário a todos os clássicos que você conhece do faroeste, Os Imperdoáveis precisa ser visto e revisto sempre. 

E afinal, o filme ressuscitou um gênero como disseram na época? Não. É uma obra prima, quase isolada no tempo, pois não houve um boom de Westerns como aconteceu com os filmes de heróis. Uma pena.

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Sobre o Colunista:

Marcus Pacheco

Marcus Pacheco

Marcus V. Pacheco é jornalista, formado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Cinéfilo, Editor de site, Colecionador e Escritor. Marcus já realizou vários curtas metragens e um longa chamado "O último homem da terra (2001)", baseado no conto de Richard Matheson. Escreveu também 30 e-books sendo 29 sobre cinema e um de ficção que está em fase inicial para publicação. Criador e editor do site "Tudo sobre seu filme (http://www.tudosobreseufilme.com.br/)" onde publica críticas, listas, aulas de cinema e curiosidades do mundo da 7ª arte há 4 anos, além de realizar entrevistas com atores, diretores, críticos e colecionadores do mundo todo.

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