O Corpo-a-Corpo com o Brasil Atualissimo
#eagoraoque, como observa Rewald, o codiretor, age sob o impulso da colagem


O espectador que se dispõe a ver #egoraoque (2020), dirigido por Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, não é o espectador habitual das salas de cinema. Desde seu estranho título, o filme de Bernardet e Rewald desglamuriza o olhar que normalmente se tem ao entrar numa sala de exibição de filmes: nada para seduzir quem lê o título e pretende ir ao cinema, tudo para quem se perturba com a natureza incógnita e perplexa de uma pequena anotação-título que encaminha para um universo de indagações e reflexões quase anti-espetáculo.
O nome central, inevitável, da realização é Bernardet. Construtor ao longo dos anos de um pensamento cinematográfico brasileiro determinante de ideias e rumos, o grande ensaísta, na velhice, talvez esgotando-se o que tinha para nos dizer em seus textos, partiu para expor sua imagem dentro de filmes. Sem pudores, deixa correr nos fotogramas seu corpo envelhecido e único. A destruição de Bernardet (2016), de Claudia Priscilla e Pedro Marques, talvez seja o marco desta exposição cinematográfica rude do corpo de Bernardet. Há o intelectual-mendigo de Fome (2016), de Cristiano Burlan, e seu dueto de velhos com Helena Ignêz em Antes do fim (2017), também dirigido por Burlan, aqui, depois de tanto escrever sobre H. Ignêz e os filmes em que ela apareceu, Bernardet se põe ao lado dela, um ex-crítico, uma ex-musa, a ex-juventude substituída pelo avanço dos anos. Em determinado momento de #eagoraoque Bernardet tira a camisa e se corta rente ao peito, sangrando, a câmara, implacável com o observador, o vê num plano estático; Bernardet corta sua carne para renovar-se no universo fílmico, agora atrás e diante das câmaras, codiretor e ator.
#eagoraoque, como observa Rewald, o codiretor, age sob o impulso da colagem. Algo pós-godardiano. “Desde o início, trabalhamos com a questão de colagem” diz Rewald em entrevista a Eduardo Escorel. Há as cenas com Bernardet, um pensador-estrela, suas divagações. Algumas cenas-impasse de discussões dum pensador branco Vladimir Safatle em que várias pessoas negras (homens e mulheres) o põem em xeque, as ideias sociais e sociológicas e políticas correm soltas como numa atualização de um filme de Jean-Luc Godard. Safatle para Escorel: “Eu diria que esse filme foi para mim, antes de qualquer coisa, uma grande experiência de pensamento, porque, acredito que penso que é, de uma certa forma, se violentar.” Bernardet para Escorel: “Tenho a impressão de que o filme foi transformador no seguinte sentido: ele não é a execução de um projeto inteiramente previsto antes de sua realização.” Em certo instante de tensões narrativas Bernardet sai de suas performances individuais e aparece no meio do grupo de homens e mulheres negros (Safatle é a exceção branca) que reflexionam sobre o Brasil ultraatual; Bernardet, ao modo antigo, diz que sua experiência é a dos sindicatos, então uma mulher negra questiona que hoje em dia os sindicatos não dão conta de tudo, da questão de gênero, raça, etc. Bernardet pergunta: “Então o que vocês propõem?” A câmara corta a cena: não há respostas para esta perplexidade. Na discussão ideológica com Safatle um rapaz negro é radical: que quer manter distâncias de pessoas como Safatle, branco e hegemônico, nunca resolveram os problemas destas ditas minorias que na verdade são maioria na sociedade brasileira.
#egoraoque é uma colagem de vozes sociais. Não chega a ser um filme profundamente satisfatório, porque às vezes ele dá mesmo essa impressão de servir de veículo para os indivíduos em ação no corpo do filme. O filme como veículo das pessoas encenadas às vezes fica demasiado solto no espaço cinematográfico, um certo desleixo formal talvez. O que é, também, ora, seu princípio de revolução estética.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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