A gaúcha Lya Luft é um caso raro da literatura brasileira deste contemporânea. Antes de entrar no livro sobre o qual aqui me debruço, lido há tantos anos, um mergulho bastante “livre” em suas memórias de infância que chamou Mar de dentro (2002), ela apõe algumas frases determinantes de sua maneira de escrever concluindo assim: “aqui se fala de encantamentos. Quem não os aprecia não deve me ler.” Os leitores de Lya sabem disto: ela não faz concessões, o rigor verbal e introspectivo de seu texto só encontra abertura para sua poética particular.

Mas, curiosamente, isto não tem impedido que, ao contrário de outros bons e exigentes autores brasileiros, ela tenha uma vasta legião de admiradores. Na Feira do Livro de Porto Alegre de 2000 seu belíssimo Histórias do tempo (2000) esteve entre os mais vendidos. Ao analista parece deslumbrante o fato de que uma autora cuja linguagem aparentemente simples logo se converte em magia descabelada e complexa, possa ombrear-se com os artesãos da escrita, aqueles cujo fim primeiro não é a arte da palavra mas sim prostituir esta mesma arte. Pode uma artista da palavra ser campeã de vendas num universo de tanta vulgaridade? Será que estas colocações não revelam a incapacidade deste observador para entender a sabedoria do público? Não serão os leitores habituais mais inteligentes do que sonha nosso vão preconceito crítico? Que importa: constatar que Lya caiu nas graças de muita gente é um deleite para quem aprecia este gênero de ficção poética que a escritora pratica com muita personalidade e, hoje em dia, extraordinária maturidade.

O desafio de Lya em Mar de dentro é vasculhar um terreno meio trivializado e fácil de cair na pieguice e no lugar-comum. Uma das obras-primas da literatura brasileira, Infância (1945), de Graciliano Ramos, deu o tom seco, rigoroso do tema, sem perder a sensibilidade das imagens desta época da vida. O gaúcho Moacyr  Scliar compôs um belo painel em Um país chamado infância (1989) reunindo crônicas publicadas em jornal nas quais ele observava o universo a partir do crescimento de seu filho Beto. Lya evoca a realidade de sua infância e realiza esta evocação com seu brilho de sempre: entre a singeleza e a força de suas imagens o leitor tem farto material para deleitar-se.

“Sinto-me um pouco intrusa vasculhando minha infância. Não quero perturbar aquela menina no seu ofício de sonhar. Não a quero sobressaltar quando se abre para o mundo que tão intensamente adivinha, sem interromper sua risada quando acha graça de algo que ninguém mais percebeu.”

“Porque eu falo para os da minha raça: os que além de racionais são também ilógicos, os bem estabelecidos que amam o imprevisível, os que na margem concreta enxergam mais do que isso e não têm com quem o partilhar.”

Frases, palavras. Frases e palavras que são sussurros poéticos aos ouvidos deste lyáfilo que há décadas percorre os mistérios desta ficção-verdade exemplar que em livros como O rio do meio (1996), Histórias do tempo e aqui neste Mar de dentro tem misturado ficção, ensaio e memórias gerando um gênero literário muito particular.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)