A Escrita Libertaria de Natalia Borges Polesso

A extincao das abelhas (2021), de Natalia Borges Polesso, fala muito de nosso tempo: o caos, ou o colapso, o fim do mundo

03/10/2021 03:31 Por Eron Duarte Fagundes
A Escrita Libertaria de Natalia Borges Polesso

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A extinção das abelhas (2021), de Natalia Borges Polesso, fala muito de nosso tempo: o caos, ou o colapso, o fim do mundo, o embate entre o homem destruidor e natureza sobrevivente que o pode descartar, as relações autoritárias, as formas de relações sexuais ressuscitadas por impulsos libertários, as mulheres como primeiros planos da história (a sua história e também a história humana). É uma ficção; mas é também um relato de coisas contemporâneas, temos ali excertos de fatos atuais e prementes do país e do mundo dissolvidos na história que se está contando, assombrando e marcando um pouco essa história. Em sua dissertação de mestrado As relações de poder e o espaço como região nos contos de Tania Jamardo Faillace (2011), Polesso anota: “Tanto a literatura quanto a história podem ser vistas como ficção, e ambas têm a mesma intenção de conferir sentido aos fatos. A história é um registro legitimado do tempo a qual tem a pretensão de ser verdade. A literatura é um registro do seu tempo em maior ou menor grau que não carrega esse ônus.” Pensadora minuciosa de literatura, a autora traz este conceito de literatura como visão de mundo libertária para dentro de sua prática literária. A extinção das abelhas, assim como já fora seu romance anterior, Controle (2019), é um exercício notável da imaginação criadora de Polesso, que, buscando os pontos de contato com a historiografia, não se aparta da realidade, mesmo quando mergulha em situações as mais delirantes.

Há erotismo em A extinção das abelhas. É um Eros devorador. Ao mesmo tempo transcendente, poético, denso. Não há como não mergulhar com as personagens nestes devaneios entre carnais e existenciais. “Começamos a nos beijar. Eu já tava molhada, eu tava molhada o tempo todo, em todos os lugares, completamente úmida, morrendo de vontade de transar e de chorar, de me desaguar inteira e sumir pelas frestas do chão. A gente transou e chorou, e morremos as duas diversas e simultâneas vezes, e nos desaguamos pelas nossas frestas. Matamos uma à outra, matamos nossas vontades, e tentamos matar qualquer coisa que não pudesse existir apenas naquele momento.”

Há erotismo concentrado na subversão. A personagem central, ao prostituir-se via internet, explora a liberdade mais avançada do sexo. Vira de ponta cabeça os estereótipos do gênero. Uma mulher subverte o homem. “Eu nem sabia como aquelas palavras estavam saindo da minha boca. Ele foi meio que parando de arfar. O movimento do braço foi ficando lento e a cara dele foi mudando de excitação para desapontamento.” No indefectível capítulo “Definição”, o ato da mulher voraz que feminiza o parceiro (ou antiparceiro) do outro lado da tela é teorizado com lucidez, a lucidez dos tempos do caos. “Emascular: ato de extirpar a genitália externa masculina (masculina?): pênis e escroto com seu conteúdo (testículos). Dessa maneira, o indivíduo perde a sua capacidade de cópula e reprodução.” Mais adiante: “Emascular um homem cis era, em última análise torná-lo mulher. Ou homem trans. Submisso. Preenchível. Dominado. As palavras ‘reduziam’ o homem como se o resultado dessa redução fosse tratá-lo como mulher. Ou como um homem trans. Mesmo no sexo.”

Lado a lado com este transversal erótico pulsantemente fora dos trilhos, há o sarcasmo para o contemporâneo: “O maior inimigo do meio ambiente é a pobreza, porque as pessoas pobres destroem o meio ambiente para comer, disse o ministro da economia do Brasil no foro de Davos há alguns anos.” E a constatação central de A extinção das abelhas, um olhar para as relações não naturais do homem na natureza: “A natureza permaneceria, era sábia. O fim do mundo era o fim das pessoas. Por que não conseguiam fazer parte dele?” As relações particulares das personagens nas tramas de A extinção das abelhas buscam dar um sentido a todas estas coisas históricas: lembremos a dissertação de Polesso, história e literatura têm a mesma pretensão, significar os fatos.

Polesso é criativa: literariamente, falo. Sabe usar os artifícios da arte narrativa em palavras. Na primeira parte, a palavra final de um capítulo sempre se liga à palavra inicial do capítulo seguinte, uma ligação sintática, um complemento, embora os capítulos divirjam em seus rumos, assuntos, apresentam esta rima formal, que é uma conexão, uma montagem. Na segunda parte, os capítulos parecem pequenos ensaios aforísticos, com divagações diversas; as personagens e a narrativa são por um período suspensas. “Que mundos já colapsaram antes deste? Quantos cataclismos? Invasões que significaram o fim para uns e o começo para outros?” Na terceira parte, as criaturas do romance retornam, mas um pouco mais sob o olhar totalizante dos eventos do colapso abraçados nos aforismos da segunda parte. “—O mundo. Teve o apocalipse. Se tu olhar ao redor. Olha isso. Onde estão as coisas que conhecemos? Aquela bola de fogo tá vindo para nos destruir. Ela fica ali o tempo todo e não deixa a noite chegar. Mas vai chegar, eu preciso que a noite chegue, pra eu dormir e acordar no amanhã. Tá cada vez maior, pra nos queimar. Eu não sei mais dormir.” Dormir, sonhar: não mais. A última frase do romance pode ser lida como um anúncio do próximo livro de Polesso: “Acho que teremos de fazer o luto dos sonhos e aprender a dormir de novo e quem sabe sonhar de novo coisas inéditas.” Coisas inéditas: o que está por vir. A autora ainda acresce um derradeiro capítulo de “Agradecimentos”, pós-narrativo. E sintetiza, melhor que qualquer leitor, inquieto com sua multiplicidade, as complexas relações literárias de seu texto. “Estou escrevendo um livro sobre uma mulher, não, sobre um bando de mulheres, um bando de gente no fim do mundo, não, estou escrevendo um livro sobre o colapso, estou escrevendo um livro sobre uma mãe e uma filha, estou escrevendo um livro sobre amizade, estou escrevendo um livro sobre o agora, até eu acertar sobre o que estava escrevendo e justamente por isso não poder mais dar uma resposta curta.” Seria muito mais uma relação poética com a realidade do que uma relação-sobre, para evocar uma antiga distinção teórica do crítico de cinema Jean-Claude Bernardet? Num paralelo atual, entre cinema e literatura, imperfeito e torto, é certo, porque são artes diferentes e as duas obras têm muitos pressupostos longínquos uns dos outros, este leitor-espectador se põe a pensar como um filme feito antes da pandemia, A nuvem rosa (2021), de Iuli Gerbase, tem olhar para o colapso tão radical quanto este romance de Polesso, escrito já sob o influxo da peste.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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