A Voz Submersa no Copo de Colera

A voz submersa (1984) representa uma curva inovadora na literatura brasileira

15/08/2021 02:16 Por Eron Duarte Fagundes
A Voz Submersa no Copo de Colera

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Salim Miguel é um escritor brasileiro. Nasceu no Líbano. Vindo para cá aos três anos de idade, criou-se na cidade de Biguaçu, que fica na área metropolitana de Florianópolis, no estado de Santa Catarina. Faleceu em 2016, aos 92 anos de idade, tendo passado seus anos finais cego: como o argentino Jorge Luis Borges. Seu romance A voz submersa (1984) representa uma curva inovadora na literatura brasileira: para topar pontos assim, é preciso recorrer aos maiores, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector. Apesar do grande esforço técnico, que produz uma linguagem que exige do leitor uma relação frequentemente cerebral para com o ato de ler, A voz submersa traz dois elementos que contraditam esta busca, no primeiro momento, formalista de Salim: a imersão da trama numa questão política duma determinada quadra da sociedade brasileira (o assassinato do estudante Edson Luís às vésperas da criação do AI-5 pelas forças da repressão dos governos militares brasileiros) e a sensorialidade impetuosa que transforma o “cérebro linguístico” na cachoeira desorganizada da sintaxe da fala. É da justaposição destes paradoxos que o romancista extrai o nervo mais criativo de A voz submersa.

“Estática, observa a multidão que se aproxima.” Há algo de poesia pós-concreta na disposição do texto que serve de prólogo à narrativa que se vai ler. O pré-romancista, um poeta no escuro, atrás da voz submersa de sua criação, descobre, em sua primeira frase, sua personagem, uma pessoa que, parada, vê a multidão deslocar-se. Esta personagem está ali: no meio e meio por fora. Ouve os gritos: “assassinos, assassinos.” E pergunta o que foi. E lhe respondem: “Mataram um moço, ali no Calabouço.” No movimento seguinte o narrador assinala: “Estudante —outro acrescenta— se dirigem para a Cinelândia.” Cinelândia, Rua Paissandu e a personagem suspira: “Mamãe.” O estranho poema estabelece tempo e lugar, fim dos anos 60, Rio, e dá nome aos bois: Edson Luís é o estudante morto. A história brasileira recapturada como epígrafe das vidas que vamos ler nas páginas seguintes: relações entre o privado e o público numas letras revolucionárias, o texto inquieto de Salim Miguel.

Já quase no fim do livro o autor retoma sua frase inicial. Dulce, a personagem central, que seria também a figura na multidão no poema que introduz tudo lá no início, está na livraria, abre um livro. “Detém-se na primeira frase: estática, observa a multidão que se aproxima.” É o autorreflexo da narrativa sobre si mesma: os espelhos se ajustam e no entanto se confundem. Mas  texto de Salim é bastante claro em expor a linguagem à sua simbologia histórica, política, antropológica.

A longa primeira parte compõe conversa (ou conversas) de Dulce ao telefone com sua mãe. O vomitório de palavras propõe algum disparate que se organiza no verbo do escritor. Já o título desta parte, “Tumentendes” se esforça por ligar a criação literária a uma certa oralidade. Toda a primeira parte, que é onde o esforço da técnica de narrar mais se acentua, é uma mistura de formas de dizer, um pouco um monólogo da criatura central, outro tanto discurso indireto livre, às vezes travestido de discurso direto; Dulce aí é ascendente, mas as outras personagens —outras vozes submersas— surgem de suas sombras, com alguma força (as cunhadas, o marido, a mãe). Em partes seguintes do romance, as cunhadas (que Dulce chama “aquelas pestes”) têm um trecho de depoimentos (intitulado “daquelas pestes”); Sylvio, o marido, também tem sua vez, seu “retrato ao espelho”. Para no último movimento, o autor-narrador assumir a ponta, dialogar com sua criatura. “O tempo passou, o tempo escorreu, o tempo demorou-se no quarto, na penumbra, na solidão.”

Raduan Nassar é um escritor brasileiro nascido na cidade de Pindorama, no estado de São Paulo. Publicou pouco. Certa vez disse que sua atividade mais constante é a criação de galinhas, não a de livros. Mas o que escreveu tem chamado a atenção de quem gosta de literatura, desde o fim da década de 70 do século passado; sua obra já chegou aos cinemas.

Um copo de cólera (1978), uma novela, é um dos textos mais despojados escritos no Brasil, sabemos todos que nossa verborragia escorrega para o barroquismo, nem sempre literariamente relevante. A novela foi filmada: mas há gorduras no filme de Aluizio Abranches, lançado em 1999: dos atores ao uso do texto de Nassar. O erotismo, na trama de Nassar, tem uma ordem de tensões sintáticas onde as metáforas minúsculas (e, de tanto, invisíveis) adotam o rigor das cordas dum relógio: tudo muito marcado e no entanto, uma sensibilidade poética determina este rigor instantâneo e o torna às vezes vago. Se A voz submersa mergulha sua linguagem num impressionismo lasso, Um copo de cólera está na vertente de linguagem que se oculta no romance de Salim pelo grande esforço de técnica literária: o cotidiano no primeiro plano. Há oralidade no romance de Salim Miguel e há oralidade na novela de Raduan Nassar: mas são oralidades diferentes, definidas pela ação diversa dos autores para com o ato de narrar. Nassar não deixa de propor sua perícia técnica: a primeira cena, “quando cheguei à tarde na minha asa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado”, é refeito na última cena, “quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto”; o primeiro “a chegada” é o ponto-de-vista dele, o segundo “a chegada” é o ponto-de-vista dela; entre os dois pontos-de-vista, os embates dos sexos contados pelo masculino. Preocupações técnicas, sim, em Nassar, mas sem incorporar as entranhas de linguagem que vemos no romance de Miguel. A estrutura tem algo mais escorreito, de aparente linearidade clássica, em Raduan: embora a vá transformando pela voz narrativa, já não submersa, mas que emerge, é o tal copo de cólera. O trecho mais longo de Um copo de cólera é “o esporro”, onde as palavras vão fazer explodir os conflitos dos sexos. “aproveitei a provisão das prateleiras pra me abastecer de outros venenos, além de eu mesmo, na rusticidade daquele camarim, entre pincéis, carvão e restos de tinta, me embriagar às escondidas num galão de ácido, preocupado que estava em maquilar por dentro as minhas vísceras, sabendo de antemão que não ia nisso nada de supérfluo”.

A voz submersa desabrocha num copo de cólera. Os problemas estruturais do mundo desnudados por uma pandemia internacional. Os problemas estruturais do mundo desabando nos protestos antirracistas no coração midiático do planeta, os Estados Unidos da América. Pois não é mesmo que a voz submersa emerge num copo de cólera? E este comentarista, nas releituras de páginas originalmente lidas no distante ano de 1984, tem de fazer como Salim Miguel no cabo de seu romance: deixo-te neste outono-inverno gaúcho de 2020; mas se te deixo, não te abandono.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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