Fragmentos Romanos
Alacre, divertido, perturbador, reiterativo e sinuoso, Petronio tem a simplicidade das narrativas mais antigas


Petrônio foi um escritor romano do primeiro século da Era Cristã. Frequentador das cortes do famigerado Imperador Nero (célebre por suas loucuras, especialmente a de queimar Roma), Petrônio é autor de Satyricon (60 d.C.) e, do que restou à posteridade deste que é considerado o primeiro romance da história conhecido hoje, pode-se perceber que ele pretende fazer um retrato ao mesmo tempo leve e sarcástico da Roma já em decadência; a dissolução dos costumes, os transbordamentos do sexo, o aparente escapismo e o vazio das relações humanas então circulantes constroem a crônica desta decadência romana, sempre tão longínqua e tão próxima do homem contemporâneo, seja qual for esta contemporaneidade.
A estrutura aparentemente fragmentária com que Satyricon chega a nós faz pensar numa série de contos que se entrelaçam edificando uma narrativa mais longa de unidade construída. Ao longo do texto, desenvolvem-se as aventuras (muitas delas eróticas, antecipando um pouco o Marquês de Sade, mas em outro sentido) em que o narrador central, Encólpio, seu amigo Ascilto e o adolescente Gitão são apresentados diante do leitor em minúcias tão maliciosas quanto ferinas.
Uma das criaturas mais agudas e enviesadas da história de Petrônio é o banquete que uma personagem promove envolvendo todos os demais seres da trama; as mutações do capitalismo (que no fundo é um sistema sempre presente em várias épocas) transparecem na descrição de Petrônio deste festim romano, opíparo e devasso. “No momento em que, ao beber, admirávamos detalhadamente a suntuosidade do banquete, um escravo colocou sobre a mesa um esqueleto de prata, feito com tanta perfeição que as vértebras e as articulações moviam-se facilmente em todas as direções.” As flutuações de classe são exibidas com narcisismo e hedonismo pelo velho romancista.
Há trechos bem atuais, e eternos. A sedução sexual que homens mais velhos impõem a garotos, e a matreirice com que estes meninos tratam a situação. Petrônio mostra que ali não há ingênuos; os interesses são diversos e vão em negociatas constantes ajustando-se. Um narrador vai à Ásia e hospeda-se em Pérgamo. “Escolhi-a para alojar-me não tanto pelo conforto das acomodações, como pela maravilhosa beleza do filho do dono.” Petrônio não foge a um pré-sadismo em algumas imaginações eróticas: “A essa palavras, foi buscar um falo de couro, salpicou-o com pimenta e urtiga pisada, untou-o com azeite e o introduziu, pouco a pouco, em meu ânus.”
Álacre, divertido, perturbador, reiterativo e sinuoso, Petrônio tem a simplicidade das narrativas mais antigas, mais primitivas. E no entanto vai no caminho duma fragmentação de vozes ultramoderna, como em outro italiano, muito posterior, Giovanni Boccaccio.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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