A Transcendencia da Dor

No mundo desesperado de Gritos e sussurros nem a religiao salva coisa alguma

17/02/2021 14:35 Por Eron Duarte Fagundes
A Transcendencia da Dor

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O que o cineasta sueco Ingmar Bergman fez em Gritos e sussurros (Viskningar och rop; 1972) é filmar a transcendência da dor: aquele momento em que o ser que sofre cria um espaço espiritual dentro do espaço físico. No texto-roteiro de seu filme, Bergman aludia a esta dificuldade de representar a morte e o sofrimento. Em seu filme realizado, por um requinte plástico que visa à profundidade, Bergman persegue esta representação: transcender os limites físicos da vida e do cinema. E o faz valendo-se das características materiais do cinema: poucas vezes se pôde ver numa tela uma agudeza plástica tão extasiante quanto em Gritos e sussurros; os planos, desde o início desta narrativa sonambúlica, têm uma natureza de pintura antiga, seguem uma harmonia criativa de cores e iluminações, os cortes observam uma precisa marcação cênica, os cenários da paredes vermelhas casam-se com as vestes brancas e depois pretas, os rostos das personagens assombram o vermelho ou os fundos negros de imagens austeras e desdramáticas.

Os enquadramentos iniciais fazem saltitar na montagem alguns planos exteriores, a ambientação natural que cerca uma propriedade rural sueca; o que deparamos neste introito narrativo são cores e beleza estética. Na sequência final, sob a voz da empregada Ana que lê o diário de Agnes, a irmã que sofreu e morreu, as imagens também são exteriores: um jardim outonal e uma felicidade quase arcaica das três irmãs e também da empregada que se embalançam. No entanto, entre estas duas cenas extremas no tempo do filme, imagens mais pictóricas que dramáticas, Bergman filma o inferno das relações entre as pessoas: e estas pessoas se encarceram em interiores assustadores, movido pela luz das velas, paredes rubras e faces despidas de qualquer piedade para com o outro. A dureza do coração dos seres está em muitos dos planos de rostos e diálogos, mas há um especialmente de Karin (vivida por Ingrid Thulin) em que a câmara observa documentalmente seus momentos tortuosos dos lábios e seu olhar cru e distanciado, esta câmara fica imóvel por algum tempo diante deste rosto e destes lábios, e algo da interpretação da atriz passa para a linguagem cinematográfica rígida e assustadora de Bergman. O tempo do plano cinematográfico bergmaniano é um pouco articulado nas marcações que o processo fílmico faz, nos movimentos iniciais do filme, falamos dos movimentos de câmara e também da personagem que sofre no leito, Agnes, dizia que estas marcações de ritmo dos planos ao longo da narrativa nasce daquilo que a imagem e o som captam no tique-taque do relógio dentro daquela casa entre assombrada e desconsolada. A forma como Bergman executa cada movimento de seu filme provoca a angústia do espectador; como no livro do escritor brasileiro Graciliano Ramos, que atravessa a palavra na angústia duma personagem, página a página, ou uma luz no subsolo, como em outro romancista brasileiro, Lúcio Cardoso, o mais soturno dos artistas tropicais da palavra. Bergman é nórdico, e então as geleiras parecem mais cortantes ainda.

Karin, a mais cruel criatura do filme de Bergman, alucinada com a repulsa de seu relacionamento conjugal, chega em certa cena, à mesa, a pegar um pedaço de vidro do copo que se quebrou. E algumas imagens depois fere com este caco sua genitália. E logo ela pinta seu rosto com o vermelho do sangue: diante do marido. A câmara não mostra ali a expressão do marido. Cerca o espectador com esta cena. Karin é o instante em que a possibilidade de aproximação com o outro se desfez inteiramente. No caso do casal, a aproximação se dá pelo sexo: ela tenta destruir o sexo, cortando a vagina. A dor aí transcende de novo: como na agonia de Agnes.

No mundo desesperado de Gritos e sussurros nem a religião salva coisa alguma. O padre que dá a oração fúnebre de Agnes é tão distanciado e cruel quanto as outras criaturas em cena. Ele fala em Deus, e em Jesus Cristo, da piedade do além: mas parece não estar falando destas coisas —quando a câmara sobe de suas vestes eclesiásticas para o rosto que está dizendo a prece, o que choca é que suas palavras de esperança cristã não se relacionam com o niilismo das imagens.

Bergman fez seu cinema assim: oscilando entre a crença e a descrença. A formação religiosa nórdica é um elemento determinante de sua maneira de fazer filmes; artista muitas vezes duro, Bergman construiu, dentro de sua religiosidade inevitável, um ceticismo devastado por duas circunstâncias formais em paradoxo,  a circunstância galante e a circunstância do desespero.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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