O Homem-Inseto de Nosso Tempo

A barata eh um retrato bastante rude das mazelas inglesas da atualidade

30/12/2020 14:34 Por Eron Duarte Fagundes
O Homem-Inseto de Nosso Tempo

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O novo livro do inglês Ian McEwan, A barata (The cockroach; 2019), dá prosseguimento à busca de excentricidades narrativas que os leitores topavam na obra anterior do ficcionista, Enclausurado (2016); se em seu trabalho precedente Hamlet reencarna num feto que observa e sente os impactos dos absurdos do mundo contemporâneo no ponto de vista da barriga da mãe, suspeitando tudo o que pode haver de amedrontador e oculto do lado de fora desta barriga, agora McEwan parte da estranheza de Franz Kafka para as asperezas de Jonathan Swift, produzindo uma parábola política satírica perfeitamente britânica a partir do fenômeno esdrúxulo do Brexit que encontra o correspondente estético em seu texto na teoria do reversalismo, mudar o fluxo do dinheiro, pagar para trabalhar, receber dinheiro ao fazer compras. O posfácio de McEwan, de certa maneira, faz parte do próprio livro: lança luzes sobre sua metáfora; ao contrário de Kafka, talvez mais próximo de Swift, embora o distanciamento de época, McEwan quer ser mais transparente e unívoco em seus símbolos.

McEwan conquistou leitores e alguns críticos mergulhando em narrativas de realismo psicológico fortemente amparadas nas origens de grandes autores ingleses do século XIX, como Jane Austen, que é uma das inspirações para a obra-prima de McEwan, Reparação (2001). É claro que os mergulhos psicológicos ou íntimos de McEwan nunca se descuidam da realidade social em que as personagens estão inseridas: numa novela como Na praia de Chesil (2007), as circunscrições dos protagonistas são bastante explícitas em espelhar a repressão do meio em que foram educados. No atual momento de sua vida de escritor, ancorado no prestígio já adquirido, McEwan se vai permitindo alguns desvios que talvez em mãos iniciantes ou desconhecidos pudessem dar em fracassos, narrativos e mesmo na capacidade de atrair o público, que poderia sentir curiosidade pelo excêntrico, todavia olharia com desconfiança e talvez alguma repulsa para certos procedimentos mais ousados.

A barata é um retrato bastante rude das mazelas inglesas da atualidade. Está longe de certas sutilezas e jogos de esconde-esconde narrativos que McEwan adotava em alguns de seus livros mais antigos. Descobrindo o véu que recobre as personagens, resta ao escritor a habilidade de contar sua história ainda com uma certa elegância de linguagem para evitar, em formas bem-sucedidas, que a novela se torne um óbvio relatório quase jornalístico dos passos dos dirigentes do mundo que, em toda a parte, ressalvados os regionalismos, se parecem. Depois de ressuscitar Hamlet, McEwan ressuscita o homem-inseto de Kafka: ainda que Swift sacuda suas longas caudas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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