O Idealismo Sucumbe
Dimitri Roudine (Rúdin; 1855) foi o primeiro romance do escritor russo Ivan Tourguenieff, antes mais prestigiado por seus contos
Dimitri Roudine (Rúdin; 1855) foi o primeiro romance do escritor russo Ivan Tourguenieff, antes mais prestigiado por seus contos. Depois ele escreveria outro romance, Pais e filhos (1862), mais conhecido no Ocidente. De qualquer maneira, Tourguenieff não é tão comentado por aqui quanto outros pilares da literatura russa do século XIX, como Dostoievski, Tolstoi, Tchekov ou mesmo Gógol. Mas criou um narrador literário igualmente arguto, igualmente profundo: as coisas nunca são rasas com os autores russos.
Tourguenieff viveu um bom tempo na França: ele pertenceu àquele grupo das letras de Gustave Flaubert e Guy de Maupassant; aliás, Maupassant alude a Tourguenieff em seu ensaio Étude sur Gustave Flaubert (1884) como “geralmente o primeiro a chegar”. Conhecendo bem a língua francesa, Tourguenieff ajudou o tradutor Louis Viardot a trasladar o texto do russo para o idioma de Vitor Hugo. É o que consta da versão sobre a qual me debruço: “traduit du russe par Louis Viardot en collaboration avec Ivan Tourguenieff”. É um pouco como se Torguenieff fosse um grande escritor francês: sem perder as características eslavas.
“C’était une calme matinée d’été.” (“Era uma calma manhã de verão.”). É a frase que introduz o universo de ficção de Dimitri Roudine. Uma introdução clássica que passa a descrever os habituais gestos da natureza e dos seres, algo que as letras francesas fazem bem de Honoré de Balzac a Georges Simenon. Toruguenieff os antecipa e dá a este verbo gaulês com que deparo um toque para lá de particular.
Passadas as assim compassadas descrições ambientais, Toruguenieff vai desenvolver em seu romance o conflito de ideias que é a base de sua narrativa. Pois é disto que se trata: Dimitri Roudine é um romance de ideias, antes de Contraponto (1928), do inglês Aldous Huxley, antes de Doutor Fausto (1948), do alemão Thomas Mann, antes de Cai a noite sobre Palomas (1995), do brasileiro Juremir Machado da Silva. As ideias do romance Dimitri Roudine precisam de um cenário: este cenário é apresentado na abertura do capítulo III, “la maison de Daria Michaëlowna Lassounska”, a casa duma mulher rica, onde se reúne uma intelectualidade provinciana russa, para passar o tempo tergiversando coisas como se fosse mudar mesmo o mundo. Na casa de Daria o narrador de Tourguenieff move as personagens um tanto com o ritmo das marcações teatrais de entradas e saídas de cena, pois o teatro era em certa medida a grande influência das letras no século XIX; mas em se tratando da sensibilidade literária de Torguenieff, estas marcações logo se desgarram e adquirem uma fluência encantatória própria deste grande escritor.
A base do conflito espiritual de Dimitri Roudine é apor a criatura de Pigassof à de Roudine, ambos frequentadores da casa de Daria. Pigassof é rude e acredita somente nas coisas práticas; Roudine é sofisticado e pensa que tudo o que é prático pode ser captado pelo teórico. Uma opção, digamos rudemente, entre uma visão realista e uma outra idealista; se Tourguenieff escrevesse seu romance nos dias de hoje, poderia transformar Pigassof num economicista e Roudine num filósofo abstrato, especialmente neste Brasil desde as últimas eleições. Tourguenieff é satírico e sarcástico em suas contraposições na narrativa. Mostra o fascínio das plateias de Daria para com o discurso inteligente de Roudine; ao cabo dum destes discursos, irritado com o discurso quanto com a mistificação com que todos, hipnotizados, o recebem, Pigassof se retira assim:
“Tout le monde approuva le compliment à l’exception de Pigassof. Il avait pris tranquillement son chapeau, sans attendre la fin du discours de Roudine, et s’en était en murmurant à l’oreille de Pandalewski, qui se trouvait près de la porte:
—C’est trop fort, je m’en vais chez les imbéciles.”
(“Todos o cumprimentaram, à exceção de Pigassof. Ele apanhara tranquilamente seu chapéu, sem esperar pelo fim do discurso de Roudine, e se fora dali murmurando na orelha de Pandalewski, que se encontrava perto da porta:
—É demais, vou para junto dos imbecis.”)
Acontece. A ausência de um mínimo de sofisticação de alguns espíritos os afastam da compreensão de espíritos demasiado sofisticados. E as relações descambam. Às vezes furiosamente.
Mas, sendo ali o ponto nervoso do romance, Tourguenieff o desenvolve também em outras paragens para fazer recrudescer ainda mais o conflito e as frustrações. Roudine se mete numa perplexidade amorosa com a filha da dona da casa onde se encontram todas as figuras da narrativa; por efeitos da excessiva racionalização de Roudine, o amor não resiste às barreiras sociais, Roudine se afasta e vai terminar seus dias em amargura até o forte episódio que decreta seu fim num dia de barricadas em Paris, em 1848, esta cidade de tantas confusões rebeldes ontem como hoje, dos estudantes das eras napoleônicas aos incompreensíveis ou incompreendidos “coletes amarelos” dos dias atuais. Mais que nunca, a eternidade da literatura se marmoriza num romance como Dimitri Roudine. (Diz-se que a cena final, a das barricadas onde Roudine se dá mal, foi acrescida numa edição de 1860, quando a censura russa abrandara com os artistas).
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br