A Representação Estética do Suicídio

Yonlu é uma obra superior acima de tudo porque não se deixa levar pelos enfeites esquemáticos a que, por exemplo, um filme como Ferrugem (2018)

21/11/2018 22:06 Por Eron Duarte Fagundes
A Representação Estética do Suicídio

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Uma das imagens mais características daquilo que a narrativa de Yonlu (2018), filme dirigido por Hique Montanari, quer expressar é a cena numa sala de aula. A voz de um professor (que está fora do quadro) se dirige ao protagonista; o espectador também ouve os alaridos dos jovens da turma, ouve-se o professor pedir silêncio, depois seguem o início e o desenvolvimento da peroração da personagem; mas na imagem há uma sala com cadeiras vazias e um jovem, de pé, faz sua dissertação verbal para ninguém como se fizesse para seus pares. Seria uma representação visual da incomunicabilidade no século XXI, apesar de todos os abundantes meios de comunicação à disposição dos indivíduos hoje em dia? Yonlu, ao verter para o cinema (cheio de metáforas visuais, sem intenções com o realismo cênico, preocupado em criar ilusões de imagens em movimento para intensificar a mente que está retratando) a história dum suicida nos tempos que antecederam seu gesto, talvez pretenda expor a estranheza  do indivíduo diante dum mundo que já não compreende; a cena da sala de aula, cheia e ao mesmo tempo vazia, simboliza este descompasso. O desejo de morte de Yonlu, que vai materializar-se estimulado por sinistros grupos da internet, parte duma história de fato acontecida em 2006 e que ganha um denso corpo cinematográfico nas mãos de Montanari. É um filme que perturba o observador valendo-se dum tema espinhoso; mas esta perturbação é muito mais metafísica que epidérmica, muito mais estética que real mesmo. Trata-se de cinema: eis tudo.

A ambientação é Porto Alegre. Há um plano aberto diante do viaduto duma avenida do centro da cidade. A personagem se engolfa no cenário: é engolida pelo vazio abstrato da cidade. A alma de Yonlu, cujo nome verdadeiro é Vinicius, músico, poeta, desenhista, está como diante da cidade no vazio, este vazio é a própria cidade, não nos reconhecemos neste vazio e mergulhamos num sombrio destruidor. O filme de Montanari utiliza as canções que geraram o universo meio mítico deste jovem sulista universal: os poemas e as músicas transitam mais na língua inglesa; mas não há ranço colonialista. Um filme em Porto Alegre no mundo. Diz-se que as animações incrustadas na narrativa derivam dos desenhos de Yonlu. No contraponto paradoxal, esta recriação se aproxima duma espécie de neodocumentário: o paradocumentário, o documentário em metáforas. Thalles Cabral, o ator, encarna (quase no sentido do espiritismo) a personagem que recria diante das câmaras; mesmo fugindo a esta preocupação de maneira direta, há uma veracidade espiritual espantosa. Os demais que circulam na encenação (Nelson Diniz como o terapeuta que depõe sobre a personagem e Mirna Spritzer como a repórter que investiga o fato, ambos à frente de Leonardo Machado e Liane Venturella como os pais do garoto e Lorena Lorenzo como a musa da fantasia do protagonista) compõem uma roda-viva em torno dos problemas internos que, sem querer, deixaram ocorrer o suicídio estimulado pelas forças perversas da natureza que, em 2006 como hoje, se articulam nos caminhos virtuais da internet.

Yonlu é uma obra superior acima de tudo porque não se deixa levar pelos enfeites esquemáticos a que, por exemplo, um filme como Ferrugem (2018), de Aly Muritiba, que também trata da relação entre suicídio e internet, se entrega. Yonlu toca, na magia do cinema, o lado mais profundo da alma: onde a dor, esteticamente, tem mais peso. O filme é, todo ele, uma projeção: uma projeção da mente da personagem central, assim como o mundo e as outras personagens são projeções do universo interior do protagonista. Tudo isto gera o descompasso e o gesto.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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