O Intelectualismo Amador

Hamlet (2014), a evocação shakespeariana do realizador brasileiro Cristiano Burlan, têm algo de amadorístico em sua pose meio intelectual

07/08/2016 01:04 Por Eron Duarte Fagundes
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Nas primeiras imagens de Hamlet (2014), a evocação shakespeariana do realizador brasileiro Cristiano Burlan, se misturam o rigor plástico dos enquadramentos com movimentos de câmara bruscos e desajeitados que cheiram a uma performance amadora, atualizando um pouco o cinema udigrudi do qual São Paulo foi um dos polos. Na verdade tanto os quadros rigorosos (imagens fixas que logo se deslocam para outras imagens fixas da metrópole) têm algo de amadorístico em sua pose meio intelectual quanto os precariamente acelerados deslocamentos da câmara obedecem a porções de rigor e beleza e provocação que já estavam dentro dos quadros movidos depois por estes movimentos mais ou menos nervosos, mais ou menos inseguros.

Burlan surpreendera antes com um documentário que relatava sua tragédia familiar, Mataram meu irmão (2013). Hamlet torna a surpreender e mesmo a descadeirar o bem-estar crítico geral, mesmo que por via de regra lhe falte a autenticidade da história do irmão assassinado. Parece que o que moveu Burlan para o universo da peça de Shakespeare foi o instinto da tragédia familiar que marca a própria vida do cineasta. O texto de Shakespeare trata duma tragédia familiar: um irmão mata outro na briga por um reino e o filho do assassinado rumina a morte do pai, entre o ímpeto da vingança e um mergulho no desespero. Burlan propõe uma reflexão cinematográfica sobre uma possível encenação de Hamlet nos palcos e nas ruas de São Paulo, uma São Paulo sombria e metafísica como este drama inglês. A peça dentro do filme é um encenar em processo; o próprio filme se converte num em-processo.

O começo do filme vai mostrar a reunião da diretora e dos atores para encaminhar os pontos de vista da encenação. Lembra o que aconteceu em alguns filmes de Eduardo Coutinho, Moscou (2008), sobre uma encenação de Anton Tchekov, e o terminal Últimas conversas (2015), inicialmente Coutinho senta-se na cadeira do entrevistado para falar de seu propósito e de seus despropósitos de entrevistar jovens estudantes cariocas da periferia. Então Hamlet irrompe na São Paulo de hoje: violência e morte, e se Shakespeare ainda é atual, é porque o homem não mudou muito nestes séculos todos.

Uma das associações exibidas em Hamlet, que o espectador brasileiro não pode descurar, é a do cinema de Burlan com o mundo do ensaísta Jean-Claude Bernardet. Em Hamlet Bernardet interpreta o fantasma do pai de Hamlet. No filme alguém questiona Bernardet por que agora resolveu ser ator. Bernardet aduz que largou tudo, a crítica de cinema, a cátedra, a feitura de livros, para ser agora ator. Para renovar-se. Para, renovando-se, não apodrecer. Porque isto é necessário em face da longevidade que a sociedade atual nos impõe: vivemos muito e, se não nos renovarmos, apodrecemos. No blog de Bernardet há uma série de entrevistas do crítico com o cineasta, uma versão em palavras da associação de dois cérebros. Na última postagem em seu blog Bernardet fala com um certo desencanto e até asco desta longevidade que nos impõem. Bernardet culpa a máquina comercial da medicina desta longevidade muitas vezes indejesada por muitos indivíduos. “A imensa máquina da medicina (hospitais, laboratórios, farmácias, médicos, inseguro saúde, máquinas de diagnóstico por imagem etc., e mais cosméticos, alimentação...) produz a nossa longevidade.” E mais: “A preocupação da máquina capitalista não é nos manter em vida com qualidade de vida, mas manter em nós a bio. À máquina não interessa o ser vivo, mas a bio de que ele é portador.” No fim, melancoliza agudamente: “Passo mais radical para eliminar a fonte de riqueza: o suicídio consciente e lúcido como forma de resistência extrema e de reapropriação de nossos corpos.” Não é de hoje que Bernardet aparece como ator em filmes: por exemplo em P.S. Post-scriptum (1980), de Jean Romain Lesage, um francês que viveu e fez filmes no Brasil. Mas o diferencial agora é que na velhice, praticamente cego e um tanto desesperado, o grande crítico se tornou uma personagem shakespeariana. É claro que um pouco tosca para a altura de seu refinamento adquirido ao longo da vida, porém nunca deixa de ser comovedora e envolvente sua presença num filme brasileiro. Por exemplo, quando a jovem que vive Ofélia oscula o fantasma: é como se a juventude beijasse o melhor do ensaio cinematográfico brasileiro. Esta contribuição do Hamlet de Burlan certamente pode redimir a realização de seus senões.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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