Notas de um Samurai Feliz

Na estreia da Bia, o sensível relato de Depois da Chuva, em memória de Kurosawa

28/07/2016 23:02 Por Bianca Zasso
Notas de um Samurai Feliz

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Depois da Chuva (Ame agaru)

Ano: 1999

Direção: Akira Kurosawa

Disponível em DVD

Em 1998, o mundo perdeu um cineasta genial e também um grande homem. Grande não apenas por seu insólito um metro e oitenta numa terra onde os homens costumam ter baixa estatura. Akira Kurosawa era grande no sentido amplo da palavra. Seus filmes eram gigantes em cenários, elenco e histórias. Um ano depois de seu falecimento, os colaboradores fiéis do diretor (conhecidos como “Os Sete samurais”, em referência a um dos mais famosos filmes de Kurosawa) se reuniu para uma tarefa complicada, mas que consideravam necessária: filmar um dos roteiros que o mestre havia deixado pronto antes de partir.

Coube ao assistente de direção de Kurosawa, Takashi Koizumi, levar para as telas Depois da Chuva, que narra a passagem um samurai e sua esposa por um pequeno feudo, no aguardo do término da temporada chuvosa da região. Esta é uma sinopse muito superficial daquela que talvez seja a história mais otimista escrita por Kurosawa. O protagonista, Ihei Misawa, é um ronin (samurai sem mestre) que desiste de buscar um trabalho fixo após algumas decepções com a vida estável. Solícito, educado e caridoso, ele surpreende os moradores da pensão onde se hospeda ao presenteá-los com comida após uma das moradoras ter acusado um idoso de roubar seu arroz. O dinheiro para a compra dos mantimentos é fruto de uma luta, algo mal visto entre os samurais. Mas a grande preocupação de Misawa é com a opinião de sua mulher. Diferente de outros casais mostrados em filmes ambientados no mesmo período, os dois parecem ter decidido se colocar lado a lado, fugindo do modelo onde o marido é quem decide pela esposa.

Depois da Chuva tem boas cenas de ação, um dos talentos de Kurosawa em vida, mas que acabam tornando-se menores pela falta de sua mão precisa. Koizumi cumpre sua função e se mantém fiel aos escritos deixados por aquele que ficou conhecido como “O imperador”, mas os cinéfilos mais atentos sentirão falta do toque de Midas, aquela magia que Kurosawa imprimia até em seus filmes feitos sob encomenda. O que compensa é mesmo a questão humana, onde a relação de Misawa com sua sina samurai e com sua esposa se mostram mais fortes que qualquer cargo de poder. Não se sabe se pela idade avançada ou se por tentar se manter fiel ao conto em que se inspirou para criar o roteiro, o diretor imprimiu um sutil romantismo em Depois da chuva diverso do resto de sua filmografia. A cena de amor de Os Sete Samurais é belíssima, mas é o retrato de uma relação que se inicia e onde os envolvidos são jovens demais para deixar transparecer algo mais profundo que o desejo físico. A cena mais significativa desse Kurosawa que manda flores é quando vemos a esposa de Misawa caminhando a sua frente, como se abrisse os caminhos para o marido e também contrariando a tradição da mulher japonesa submissa. O ronin não parece incomodado com a atitude um tanto feminista para aqueles tempos de Japão feudal. Ele sabe do poder daquela mulher, que toma decisões por ele sem deixar de ser amorosa e devotada.

Quem quer explicar o amor se valendo de alguns filmes tem trabalho para selecionar as tantas formas que ele é revelado na película. Kurosawa talvez tenha feito em Depois da Chuva sua visão mais bem acabada desse sentimento. Sabe aquela maturidade, onde as respostas são encontradas nos olhares e ser cúmplice é o que nos mantém unidos? Talvez nunca saibamos, mas Kurosawa deu a sua versão, tendo como fio condutor a figura que o fez imortal para a história do cinema: o samurai.

 

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Sobre o Colunista:

Bianca Zasso

Bianca Zasso

Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.

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