Falando de Si Mesmo Para Falar do Brasil
A história (ou as histórias) contada(s) em Tudo Bem se inspiraram nas experiências pessoais do cineasta
Nos créditos de apresentação de Tudo bem (1977), clássico do cinema brasileiro dirigido por Arnaldo Jabor, aparecem imagens de um filmezinho amador. O cineasta revelou que se trata de material familiar, as pessoas filmadas são seus pais, seus irmãos, ele mesmo, enfim evocações visuais da infância; este filmezinho conclui-se com a cena dum garotinho que se coloca de pé num muro, aparecendo sobre sua imagem o letreiro: Um filme de Arnaldo Jabor; este menino é Jabor aos três anos.
A história (ou as histórias) contada(s) em Tudo bem se inspiraram nas experiências pessoais do cineasta, que na época reformava seu apartamento no Rio e convivia com operários. Embora apelando para uma fantasia mais ou menos surrealista (desde os três fantasmas que são na verdade parcelas de sua personalidade ou da pequena-burguesia brasileira: um poeta –a retórica que a certa altura da narrativa verte sangue pela boca, como um tuberculoso de vocábulos--, um integralista –o moralismo arcaico familiar—e um industrial quebrado –a parte fraudulenta de nossa vida social), Tudo bem apresenta contatos incríveis com a realidade, revelando o dom de observador de Jabor. As caracterizações dos burgueses Juarez, Elvira e seus filhos, assim como o olho e os ouvidos para os diálogos entre os trabalhadores, têm uma veracidade impressionante; na época de seu lançamento nos cinemas do país, a dialogação era um de seus problemas técnicos, o que acentuava o grotesco da encenação; exibido há alguns anos na televisão e agora digitalizado para o relançamento nos cinemas, o uso do som direto original do filme, que visava à espontaneidade, não obscurece mais o sentido das palavras, tornando mais claros os detalhes verbais das caracterizações de Jabor.
O sangue pinga da letra eme do título no início do filme. Este sangue vai aparecer, incômodo, na festa final de inauguração do apartamento, em que Elvira e o filho se esforçam por esconder aquela mancha vermelha do operário morto por outro por causa duma banana poucas horas antes da recepção. Jabor fez seu filme definitivo sobre o Brasil e debruçou-se nesta distância que separa uma classe social mais privilegiada de outra marginalizada; é patética a forma como Juarez observa, numa ânsia de primitivismo, o comportamento dos operários, que ele chama infantil. Sua obsessão por sons indígenas e sua constante contemplação dum programa televisivo que mostra nossas ditas belezas naturais são outros elementos de caracterização da personagem de classe média.
Emiliano Ribeiro, que aparece nos créditos como assistente de direção, tornou-se cineasta com alguns filmes inconsistentes: As meninas (1994) e Condenado à liberdade (2001), mostrando que o aprendizado de Tudo bem ainda não lhe valeu nada. A criatura de Anselmo Vasconcelos, que mata seu colega por uma banana, revela em certo diálogo que é do morro da Babilônia, no Leme, região carioca que foi motivo de um documentário de Eduardo Coutinho, Babilônia 2000 (2000). Esta coincidência alarga o campo das observações críticas, levando-nos a aproximar as cenas dos trabalhadores em Tudo bem e as filmagens documentais de Coutinho. Certo: as interpretações do filme de Jabor são profissionais, os atores pontuam a ação, em Coutinho mesmo o prodigioso trabalho de montagem não inibe o amadorismo dos “intérpretes reais”. No entanto, há uma ligação entre o comportamento da câmara de Jabor (documental em muitos planos) e a naturalidade da “encenação” de Coutinho, entre a “pose realista” duma pessoa de Coutinho e o despojamento cênico e verbal de atores como Stênio Garcia e Anselmo Vasconcelos na realização de Jabor. Há uma ponta de ficção em cada documentário que fazemos, há uma ponta documental em cada ficção que rodamos.
Sem embargo de expor uma narrativa sem tropeços e de grande unidade, Tudo bem alinhava algumas citações literárias e cinematográficas encadeadas com raro senso de conjunto, o que impede o desmoronar da unidade rítmica atingida por Jabor com uma felicidade de mestre. O fantasma-poeta recita Camões, um soneto clássico sobre o amor. Juarez, ao contemplar embevecido seus operários, afirma, evocando Euclides da Cunha: “São antes de tudo uns fortes.” As mãos de vagabundos que tentam fantasmagoricamente tocar num apavorado Juarez lembram aquelas mãos lúbricas que num corredor escuro buscam o corpo duma jovem Catherine Deneuve em Repulsa ao sexo (1964), do polonês Roman Polansky; em Tudo bem é a repulsa ao povo que expressa a face assustada do burguês Juarez (apesar de algumas recaídas paternalistas enquanto convive com os operários, como aquela concessão a abrigar a família de um deles quando é subitamente despejada de onde moravam). Pode-se referir também, a propósito desta repulsa burguesa, o segundo parágrafo de Angústia (1936), obra-prima literária do alagoano Graciliano Ramos, que certamente Jabor, brasileiro culto, deve ter lido: “Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.” Ainda se pode lembrar que a obsessão de Elvira em fantasiar uma traição de seu marido é a mesma da burguesa Julieta no feérico Julieta dos espíritos (1965), uma das realizações mais soltas e controvertidas do italiano Federico Fellini. Mas, como se disse no começo deste parágrafo, tudo isto vai bem encadeado no corpo do filme.
Longos anos depois de seu lançamento, Tudo bem permanece o mais agudo retrato cinematográfico do Brasil e é dele que saem as cenas mais ferinas de seus irmãos mais novos, como Dezesseis zero sessenta (1995), de Vinicius Mainardi, e Cronicamente inviável (2000), de Sérgio Bianchi; apesar de atulhado de discussões datadas e muitas vezes até particulares da classe social e intelectual a que Jabor pertence (como as relações de classe vistas de um jeito meio centro-esquerdista típico dos anos 70), Tudo bem não envelheceu um milímetro: ainda é cinematograficamente tão fogoso como no primeiro dia em que o vi. É o caso feliz duma obra de arte em que o realismo delirante acerta na veia.
P.S.: Observando minha lista de destaques do ano cinematográfico de 1978, aquele que, conforme narro em meu livro Uma vida nos cinemas (1999), marcou o início de minha paixão tardia pelo cinema, topo no topo com três obras-primas: O joelho de Claire (1970), do francês Eric Rohmer; Um dia muito especial (1977), do italiano Ettore Scola; e Tudo bem.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br