O Mundo de Fellini: Arcaico e Novo

Satyricon segue muito o sentido de cinema que fora inaugurado por Fellini em Julieta dos espiritos (1965): um divertimento louco

26/11/2024 20:01 Por Eron Duarte Fagundes
O Mundo de Fellini: Arcaico e Novo

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O cineasta Federico Fellini é um romano: embora tenha vindo do interior da Itália, na adolescência. Petrônio foi um romano do primeiro século da Era Cristã, um século ainda marcado pelo mundo pagão, o cristianismo incipiente  não indicava seu futuro; Petrônio foi o primeiro romancista conhecido. Fellini, numa curva complicada de sua criação cinematográfica, quando a crítica (ou parte dela) era acerba com os rumos de sua obra, foi buscar no que sobrou para a posteridade em Petrônio para dar sequência à sua filmografia. Satyricon de Fellini (Fellini Satyricon; 1969) faz uso livre do texto de Petrônio, que, pelo que chegou a nós, parece uma coletânea de excertos brilhantes mas descontínuos; o filme de Fellini segue esta linha  desparelha, como é habitual nas narrativas do realizador: uma colagem de situações que pouco a pouco compõe uma tessitura dramática. Poucas vezes Fellini foi à literatura em busca de inspiração: a outra vez de que me lembro foi em Casanova de Fellini (1976), uma colagem também livre e irregular das aventuras amorosas e outras do famoso escritor italiano que na posteridade ficou mais evocado por suas acrobacias eróticas.

Satyricon segue muito o sentido de cinema que fora inaugurado por Fellini em Julieta dos espíritos (1965): um divertimento louco, um delírio como se o diretor tivesse a mão coordenada pelo efeito de alguma droga. Formalmente, a estrutura de personagens e imagens avança para as intenções de Fellini em Julieta: desmanchar a seriedade  do olhar do espectador, permite uma nova derrisão visual para o cinema. No entanto, Satyricon, ao visitar o universo pagão do primeiro século do milênio após o nascimento de Cristo, faz na verdade uma ponte com A doce vida (1960). Se neste filme de ambientação contemporânea Fellini expunha a soltura das amarras morais e sexuais do homem de meados do século XX, em sua investida no mundo antigo o cineasta mostra as mesmas  coisas em outros tempos. A Roma de A doce vida seria a ressurreição da Roma de Petrônio. Libertinagem e hermafroditismo se situam num e noutro universo. No fim de A doce vida um ser homem-mulher diz que em 1964 (quatro depois da realização do filme) tudo será uma depravação total; ao longo de Satyricon a carnalidade transborda, pouco importa se é masculino que se mistura entre si ou se há uma fêmea  em cena, Encolpio e Ascilto se enamoram do jovem Gitão mas há uma cena em que uma nativa transa com os dois, é o pan-sexualismo que liga os dois tempos, a doce vida de agora ao paganismo de ontem.

Fellini vai longe em sua simbologia delirante. A deformidade de alguns seres que reluzem na voracidade da imagem tem fundo de estranhamento erótico: o pavoroso excitante. O banquete de Eumolpo (que antecipa o fastio da comilança de Marco Ferreri na década seguinte) faz das  exuberantes comidas condimentos para o sexo que se vai encenando, são duas formas carnais desgovernadas; para contrastar, antes vemos uma cena dentro duma pinacoteca em que Eumolpo tergiversa sobre a mitologia romana navegando por entre os quadros que o espectador espia. No fim do filme, após a última imagem, Fellini congela-a numa gravura incrustada numa rocha à beira do mar: como A doce vida, Satyricon conclui suas ações diante do mar mediterrâneo. Em Fellini os antigos são isto, pinturas, objetos de delírio: uma forma de excessos, quase desprovida de sentido, mas plena dos sentidos.

Martin Potter, Hiram Keller e Max Born, os intérpretes centrais, não são muito conhecidos. Mas Alain Cuny foi o intelectual suicida de A doce vida. E Lucia Bosè foi atriz de Michelangelo Antonioni em Crimes d’alma (1950) e A dama sem camélias (1953).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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