Especial Conhecendo o Cinema de Leni Riefenstahl
Conheca a historia da importante cineasta e alguns filmes que estao disponiveis em DVD
A luz azul (Das blaue licht). Alemanha, 1932, 79 minutos. Drama. Dirigido por Leni Riefenstahl. Distribuição: Sesc Digital (em domínio público)
Nas noites de lua cheia, uma misteriosa luz azul brilha no alto de uma montanha. Ao longo dos anos, os moradores de uma vila próxima escalam até o pico para checar o estranho acontecimento, mas nunca retornam de lá. Junta (Leni Riefenstahl), uma mulher solitária, chega ao vilarejo e consegue se aproximar da luz. Então é considerada uma bruxa, tornando-se alvo de fanáticos; revoltados, homens e mulheres do vilarejo a culpam pelas mortes das pessoas que nunca voltaram da montanha e saem para caçá-la.
Primeiro filme autoral de Leni Riefenstahl (1902-2003), a controversa cineasta alemã admirada por Adolf Hitler e que trabalhou anos a fio com ele. Ela produziu ‘A luz azul’, escreveu o roteiro - baseado numa novela de Gustav Renker, dirigiu, editou e atuou na pele da protagonista, Junta, uma mulher tida como bruxa e que passa a ser perseguida por fanáticos – Leni era bonita e muito inteligente. Na época, tinha apenas 29 anos, e fez o roteiro junto de Carl Mayer, roteirista austro-húngaro que escreveu filmes do Expressionismo Alemão, como ‘O gabinete do Dr. Caligari’ (1920) e ‘A última gargalhada’ (1924). Por isso ‘A luz azul’ traz fortes traços do Expressionismo, com uma trama de fantasia, personagens grotescos e estética estilizada nos enquadramentos e nos grandes cenários fotografados na penumbra, que lembram um sonho.
Com esse filme, Adolf Hitler considerou Leni uma cineasta perfeita, tornou-a sua diretora favorita, e logo depois a chamou para trabalhar com ele no Reich. Essa é a versão que Leni defendeu a vida toda em entrevistas - há quem diga que foi ela quem assistiu a um discurso de Hitler, ficou encantada e propôs ao Führer seu trabalho como cineasta. Independentemente de quem procurou quem, o que houve foi uma longa parceria entre ambos – no ano seguinte, 1933, ela filmou o ‘5º Congresso Nacional-Socialista Alemão’, em Nuremberg, lançando-o como um filme-propaganda, ‘A vitória da fé’, de 61 minutos; o filme prepararia o maior filme dela e um dos mais importantes do cinema europeu daquela época, em termos de fotografia e montagem, “O triunfo da vontade” (1935), em que ela registrou o ‘6º. Congresso Nacional-Socialista Alemão’, também em Nuremberg, o famoso congresso nazista que reuniu 35 mil pessoas. A parceria não pararia aí; ela dirigiu o documentário em curta-metragem ‘O dia da liberdade’ (também de 1935), sobre o Exército de Hitler, e anos depois outro épico monumental da linguagem moderna, as duas partes de ‘Olympia’ (1938), traduzido no Brasil como ‘Olimpíadas e a mocidade olímpica’, sobre os Jogos Olímpicos de Verão de 1936 em Berlim – o filme deu a ela prêmio especial no Festival de Veneza.
‘A luz azul’ é um filme pioneiro dessa estética e narrativa diferenciadas da diretora, que já demonstrava aqui amplo domínio técnico com seus enquadramentos virtuosos e movimentos de câmera fora do comum, o que seria notável em ‘O triunfo da vontade’ - Infelizmente, a diretora serviu ao Reich, fazendo filmes que ampliavam o discurso hitlerista para fora do nicho nazista. Leni até o fim da vida defendeu que nunca foi filiada ao Partido Nazista e, conforme contava em entrevistas, ela era ingênua na época, não desconfiava sobre os rumos que a Alemanha tomaria nas mãos de Hitler. Ela pagou um preço caro: nunca mais conseguiu financiar filmes e gravar outros, pois ficou tachada como ‘a cineasta do Reich’, sofrendo boicote, além de ter sido presa, acusada de usar prisioneiros de guerra nos seus filmes, o que nunca ficou provado.
Indicado ao Festival de Veneza, que tinha sido fundado dois anos antes, ‘A luz azul’ foi rodado nos Alpes da Itália e trata de temas discutíveis na época, como fanatismo religioso. Está em domínio público e pode ser assistido gratuitamente no Sesc Digital, pelo Internet Archive, uma organização sem fins lucrativos fundada em 1996 que mantém um repositório com mais de 10 petabytes de arquivos digitais. Essa cópia vem de uma restauração de 2005, com metragem de 79 minutos, seis a menos que a original, de 85 minutos. No Internet Archive – acesso em https://archive.org/, a parceria com o Sesc Digital traz 10 filmes numa mostra chamada ‘Pioneiras do cinema’, que reúne curtas e longas escritas e/ou dirigidos por mulheres entre 1906 e 1946. Além de ‘A luz azul’, há os longas ‘A luz do amor’ (1921), da norte-americana Frances Marion, e ‘O ébrio’ (1946), da brasileira Gilda de Abreu, e curtas-metragens de Alice Guy-Blaché, Mabel Normand, Maya Deren e outras. Acesso ao Sesc Digital em https://sesc.digital/home
O Triunfo da Vontade (Triumph des willens). Alemanha, 1935, 108 minutos. Documentário. Dirigido por Leni Riefenstahl. Distribuição: Classicline
Documentário sobre o ‘6º Congresso Nacional-Socialista Alemão’, realizado em Nuremberg em 1934 e liderado por Adolf Hitler. Conhecido como o ‘6° Congresso do Partido Nazista’, reuniu mais de 35 mil pessoas e tornou-se uma das maiores armas da propaganda nazista.
Filme-propaganda da Alemanha Nazista encomendado por Adolf Hitler, muito estudado e comentado devido à estética inovadora, milimetricamente planejada pela cineasta Leni Riefenstahl (1902-2003). Leni dirigiu, escreveu, produziu, montou e ajudou na fotografia desse documentário opulento, cuja ideia era documentar os primeiros anos da NSDAP, o Partido Nazi, fundado duas décadas antes.
Tudo é grandiloquente no documentário – da ópera pomposa do alemão Richard Wagner aos zepelins pelos céus, das paradas grandiosas com desfiles de cavalos e carros alegóricos ao batalhão inumerável de soldados enfileirados em perfeita harmonia. Uma manifestação catártica do povo alemão diante da figura de Hitler e do alto escalão do Reich. Ali vê-se o torpor das massas, movidas pelos discursos fascinantes do Führer, que aos poucos foi levando a Alemanha para a barbárie, definindo a essência do que foi o nazismo.
Leni era uma esteta, sabia de enquadramento e montagem como ninguém, e o filme fala por si só sobre a parte técnica. Ela coloca a câmera no chão, usa e abusa de plongée e contra-plongée, recorre a gruas para captar imagens do alto etc. Por isso foi um filme ousado e ambicioso numa época em que o cinema ainda era mudo e não havia os recursos de hoje. Consta que Leni utilizou 30 câmeras e contratou 120 técnicos de som e de imagem pra captar os comícios em Nuremberg; ela demorou seis meses para editar o filme, e as quase duas horas de duração da versão final representam apenas 3% do material bruto, ou seja, o total de captação era de quatro mil horas de imagens.
Leni tinha carta branca de Hitler para fazer o filme; na exibição da obra pronta, ela teve atritos com Goebbels, o ministro da propaganda nazista, que detestou o resultado; mas Hitler gostou, usando a obra para glorificar o movimento nazista - depois da Segunda Guerra, o longa foi banido da Alemanha e proibido em alguns países. Grande parte das imagens que conhecemos dos discursos de Hitler e Goebbels vieram desse filme.
A cineasta sempre se defendeu dizendo que não imaginava os rumos do Nazismo na 2ª Guerra – seu filme, por retratar a alienação do povo alemão diante de Hitler, ajudou a espalhar discursos de ódio que depois seriam usados para unir a Alemanha e justificar perseguição aos judeus – as falas de Führer já mencionavam a raça ariana, o povo alemão como divino, e ele, Hitler, como uma presença onipotente, de um líder escolhido por Deus.
Apesar de Leni nunca ter se filiado ao Partido Nazi, foi a cineasta oficial do Nazismo – antes fez os curtas ‘A vitória da fé’ (1933) e ‘O dia da liberdade’ (1935), que tratavam, respectivamente, do ‘5º Congresso Nazista’ e dos soldados de Hitler, e depois faria as duas partes de ‘Olympia’ (1938), também conhecido como ‘Olimpíada e a mocidade olímpica’, sobre as Olimpíadas de Berlim em 1936, com Hitler no comando do país.
Exibido e premiado no Festival de Veneza, o documentário teve distribuição mundial pela UFA, a Universum Film AG, a maior rede de estúdios cinematográficos da Alemanha durante a República de Weimar e o III Reich, concorrente de Hollywood e que mantinha salas de cinemas ao redor do mundo – grande parte dos filmes do Expressionismo Alemão foram produzidos e distribuídos pela UFA, como ‘O gabinete do Dr. Caligari’ (1920), ‘Aurora’ (1927), ‘Metropolis’ (1927) e ‘O anjo azul’ (1930).
‘O triunfo da vontade’ virou um filme mítico e temido. Aparece até hoje em listas dos grandes filmes do cinema – concordo em termos de montagem e captação, e cineastas importantes já ressignificaram sequências do documentário, como ‘Star Wars’, ‘Tropas estelares’ e ‘Jogos vorazes.
Disponível em DVD pela Classicline na metragem de 108 minutos – a metragem original é de 114 minutos. No DVD, que está com boa imagem, não deixem de ver, na seção dos extras, o curta de Leni ‘O dia da liberdade’ (1935), sobre a propaganda e o exército hitlerista.
Mais sobre Leni Riefenstahl
Leni Riefenstahl, quando pequena, estudou pintura e literatura, incentivada pela mãe. De família rica, filha de um industrial, Leni tinha apenas um irmão, que morreu no front da 2ª Guerra Mundial. Não quis assumir os negócios da família e seguiu para a carreira do esporte – fez natação e foi ginasta olímpica e aos 16 entrou para o balé, tendo duros conflitos com o pai. Foi dançarina e bailarina notória em Berlim nos anos 20. Lesionada, não pôde mais dançar, então, como gostava de cinema, pediu emprego para um diretor, Arnold Fancke, e acabou trabalhando em dois filmes dele como atriz, ‘Monte sagrado’ (1926) e ‘O inferno branco de Piz Palu’ (1929) – este, codirigido pelo importante cineasta Georg Wilhelm Pabst. Em ‘Monte sagrado’ auxiliou na direção, até que em 1932 fez ‘A luz azul’, codirigido pelo diretor austro-húngaro Béla Balázs (sem crédito).
No cinema, Leni, além de dirigir, trabalhou como produtora, montadora e roteirista de seus filmes, e ocasionalmente foi diretora de fotografia. Depois de viver o auge no cinema alemão dos anos30, caiu no ostracismo - nunca mais conseguiu financiar filmes e gravar outros, pois ficou tachada como ‘a cineasta do Reich’, sofrendo boicotes. Dirigiu só mais um filme, ‘Terra baixa’ (1954), um drama musical, em que ela faz a personagem principal – ela era atriz de formação, aparecendo em ‘A luz azul’ (1932), por exemplo - nos anos 60 tentou fazer uma refilmagem de ‘A luz azul’, mas não conseguiu recursos financeiros.
Para sobreviver, Leni dedicou-se à fotografia até o final da vida, inclusive à fotografia submarina, em que se tornou pioneira, chegando a publicar livros da área.
Viveu reclusa, e em 2000 sofreu um acidente de helicóptero quando estava no Sudão, na África, onde viveu por um período a trabalho. Leni morreu em 2003 aos 101 anos.
Sobre o Colunista:
Felipe Brida
Jornalista e especialista em Artes Visuais e Intermeios pela Unicamp. Pesquisador na área de cinema desde 1997. Ministra palestras e minicursos de cinema em faculdades e universidades. Professor de Semiótica e História da Arte no Imes Catanduva (Instituto Municipal de Ensino Superior de Catanduva) e coordenador do curso técnico de Arte Dramática no Senac Catanduva. Redator especial dos sites de cinema E-pipoca e Cineminha (UOL). Apresenta o programa semanal Mais Cinema, na Nova TV Catanduva, e mantém as colunas Filme & Arte, na rede "Diário da Região", e Middia Cinema, na Middia Magazine. Escreve para o site Observatório da Imprensa e para o informativo eletrônico Colunas & Notas. Consultor do Brafft - Brazilian Film Festival of Toronto 2009 e do Expressions of Brazil (Canadá). Criador e mantenedor do blog Setor Cinema desde 2003. Como jornalista atuou na rádio Jovem Pan FM Catanduva e no jornal Notícia da Manhã. Ex-comentarista de cinema nas rádios Bandeirantes e Globo AM, foi um dos criadores dos sites Go!Cinema (1998-2000), CINEinCAT (2001-2002) e Webcena (2001-2003), e participa como júri em festivais de cinema de todo o país. Contato: felipebb85@hotmail.com