Escrever Cemiterios
Andre Caramuru Aubert abre a mente e o coracao de seu leitor para os aspectos raros de suas construcoes narrativas em Cemiterios


Para introduzir o leitor no romance que vai ler, uma dedicatória que espanta pelo inusitado. “À memória de Cornélio Penna, Cyro dos Anjos e José Geraldo Vieira, escritores que o país se deu ao luxo de esquecer.” Três romancistas magníficos que a vulgaridade brasileira teima em jogar para fora de nossa memória, mesmo a nossa, daqueles que os amamos tanto. Na sequência, as epígrafes passam pelo russo Vladimir Nabokov e por três livros, um de Cyro, um de Penna, um de José Geraldo.
Com estas pistas, o romancista André Caramuru Aubert abre a mente e o coração de seu leitor para os aspectos raros de suas construções narrativas em Cemitérios (2014), que é justamente isto, uma evocação dos cemitérios literários brasileiros; mas aqui estamos diante de cemitérios que não cheiram a putrefação, absolutamente, são antes cemitérios como templos, e o leitor é um privilegiado visitante de túmulos luminosos e refinados.
Cemitérios cruza basicamente por três referências básicas que as pistas da dedicatória já anunciavam. Seu ritmo de narrar, uma espécie de “andante”, para usar uma equivalência musical, com as frases despojadas, líricas e feitas de inteligência sensível, nasce em boa parte da atualização das formas de diário íntimo de O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos. Cenários, universos e personagens de mesmo nome são retirados de outras duas obras-primas: A menina morta (1954), de Cornélio Penna, e A ladeira da memória (1950), de José Geraldo Vieira. Cemitérios, desde seu título, é um abrigo literário para estes irmãos antecessores: o leitor contemporâneo dum romance como Cemitérios se privilegia desta narrativa museu ou mosaico. Curiosamente, e com extrema habilidade, André faz esta ressurreição de antigos estilos de compor linguagem e narrativa sem cair em anacronismos, sabe fundir as formas poéticas (que são mesmo as que informam a estrutura de Cemitérios) com nossa banalidade diária. Assim, entre as três referências, aproxima-se mais de Cyro dos Anjos.
No posfácio, o autor aponta, melhor que ninguém, as fontes literárias de sua ficção, que já estavam um pouco sugeridas na dedicatória do início. No entanto, há outras fontes, reais, das memórias do romancista de Cemitérios. E, para além das fontes, a edificação dum universo romanesco que é notavelmente belo e sólido em todas as suas linhas.
“Havia uns dez ou onze meses, aproximadamente, eu conseguira, com a ajuda de Manuel Procópio, um mateiro da região, localizar o ponto exato onde um dia existiu o Grotão, e depois disso voltara lá algumas vezes.” A partir disto, aperta-se o botão da memória, uns cenários, um amor, outros amores, andanças, trabalhos: as ruínas de coisas antigas vivem dentro do narrador que se manifesta (um “eu”) em Cemitérios e, assim vivendo, vivem dentro dos leitores (um “nós”). “Sentado neste tronco, no alto desse morro, eu olho para o Grotão/Camapuã lá embaixo.” É a posição em que, ao ler, parece estarmos: no alto, olhando lá para baixo, uma espécie de vale onde está uma fazenda que hoje só pode existir na memória. Como a literatura é mais uma arte temporal (a disposição das palavras no tempo) que espacial (os cenários são mais ilusórios e não têm a textura da pintura ou do cinema), os cemitérios ressurgem separados de nós por esta névoa de frases que são signos antes que representações.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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