O escritor francês Stendhal foi um contemporâneo da Revolução Francesa e de Napoleão Bonaparte. Estas coisas determinam muito de sua literatura. Antes de se tornar o ficcionista consagrado, ele escreveu um ensaio sobre as relações afetivas com a mesma agudeza de seus romances mais aclamados.

Este ensaio é Do amor (De l’amour; 1822), que parece isto mesmo: um conjunto de notas do jovem Stendhal para a edificação de suas personagens definitivas. Em suas lucubrações Stendhal tenta entender os caminhos amorosos e as mulheres. Suas considerações estão cheias de achados íntimos. Ele começa estabelecendo quatro compartimentos da paixão amorosa. Vê a vida e observa os seres que conhece e deita os olhos na literatura. O amor-paixão (“l’amour-passion”) tem um forte teor poético e literário. Mas o amor físico (“l’amour physique”) e o amor de vaidade (“l’amour de vanité”) são mundanismos que as letras abraçam. Viajando, Stendhal anota como os diferentes povos reagem ao fenômeno amoroso.

Do amor pode ter acentos autobiográficos evidentes. Mas Stendhal, o jovem pensador, se esforça por dar ciência a suas teses: até onde, analisando fenômenos humanos (sociais ou psicológicos), pode o homem pôr-se um pouco do lado de fora para bem concluir seus estudos. Stendhal busca convencer-nos: “Je cherche à me dépouiller de mes affections et à m’être qu’un froid philosophe.” (“Procuro desfazer-me de meus sentimentos e tornar-me senão um frio filósofo.”).

No começo de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) o escritor brasileiro Machado de Assis alude a uma circunstância literária: Stendhal teria escrito um de seus livros para cem leitores. Machado não diz que livro é: talvez não lhe tenha ocorrido à memória na hora da pena. Quem agora lê Do amor descobre a elipse machadiana: Do amor é este livro. “Je n’écris que pour cent lecteurs, et de ces êtres malhereux, aimables, charmants, point hypocrites, point moraux, auquels je voudrais plaire, j’en connais à peine un ou deux.” (“Não escrevo senão para cem leitores, e gostaria de agradar a estes seres infelizes, amáveis, encantadores, nada hipócritas, nada morais; deles conheço somente um ou dois.” Stendhal ainda não estourara com seus grandes romances; ou poderia estar brincando com seu próprio prestígio. Ou, romancista refinado, sabia que seus escritos eram para poucos: os cem leitores. Esta teoria elitista da audiência da arte se associa à de outro francês, o cineasta Jean Renoir, que disse: “On croit que la peinture c’est secret, mais le cinéma, c’est beaucoup plus secret; on croit que le cinéma, c’est fait pour les 6000 personnes du Gaumont-Palace, ce n’est pas vrai; c’est fait pour trois personnes parmi 6000 personnes.” (“Acredita-se que a pintura é uma arte secreta, mas o cinema o é muito mais; acredita-se que o cinema é feito para as seis mil pessoas do Gaumont-Palace, isto não é verdade; ele é feito para três pessoas entre essas seis mil.” De Stendhal a Renoir, fecho estas minhas notas.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)