O Regresso de um Filme Incompreendido

O que se viu em Amargo Regresso no final da década de 70 foi sua óbvia mensagem pacifista

28/08/2018 00:44 Por Eron Duarte Fagundes
O Regresso de um Filme Incompreendido

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O crítico norte-americano Peter Biskind (cuja semelhança facial, pelo sorriso e pelo bigode ou talvez pelo sorriso de bigode, com o escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro é impressionante) termina seu ensaio Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood (1998) debruçando-se sobre o fim da vida e da carreira do realizador americano Hal Ashby, morto, pouco depois do Natal de 1988, aos 59 anos de idade, de câncer do fígado, segundo o noticiário internacional. Anota Biskind em seu livro: “Mas podia muito bem ter sido um coração partido.” Algumas páginas antes o ensaísta observa: “Morrer é a pior estratégia de carreira de Hollywood. Hal Ashby foi esquecido em grande parte porque teve o infortúnio de morrer ao final dos anos 80, mas entre todos os diretores dos anos 70 ele teve a trajetória mais extraordinária.” Relutei ao ler isto, pois, embora algumas coisas do cinema de Ashby me tenham atraído no passado, nunca cheguei a entusiasmar-me por seu universo cinematográfico, como às vezes acontecia com minha visão de filmes de Robert Altman e Martin Scorsese.

Agora, a revisão de Amargo regresso (Coming home; 1978), o “filme vietnamita” de Ashby, me desorienta, pela atualidade de sua proposta cinematográfica e pela acuidade emocional que o cineasta sabia inserir numa narrativa mesmo que seguidamente recorresse a tons melodramáticos próximos do pueril. A inteireza e o vigor deste clássico antibelicista dá a imediata vontade de rever os mais referidos filmes de Ashby, Ensina-me a viver (1971), Esta terra é minha terra (1976), Muito além do jardim (1979), para observar se a excelência fílmica de Amargo regresso é uma exceção ou os respingos de grandeza podem ser reencontrados em seus outros filmes. Não é por acaso que o mote final do livro de Biskind é a figura  estranha de Ashby, que é a própria maneira como a irreverência meio marginal se incrusta no sistema, como Hollywood traz em si seu próprio veneno sem abdicar de suas características hollywoodianas: só poderia terminar com um câncer de fígado, que é a forma física de um coração partido.

O que se viu em Amargo regresso no final da década de 70 foi sua óbvia mensagem pacifista, o que mereceu da americana Pauline Kael os adjetivos “intuitivo mas amorfo” e de minhas anotações de então uma esquematização do roteiro que se centra na previsibilidade de alguns lances do triângulo amoroso entre o paralítico de guerra, o garboso capitão-marido e a esposa certinha do capitão que, voluntária num hospital de feridos de guerra, se apaixona pelo paralítico. Passados tantos anos, estas análises parecem datadas e mofadas; apesar de Amargo regresso ter nascido um pouco como um projeto anti-Vietnã da atriz Jane Fonda, então em pleno ativismo político, e aparentemente ter topado na disposição social do cinema de Ashby uma sábia correspondência, a verdade é que a estrutura dramática da narrativa transcende tudo isto e, mais do que político, o que se revela aqui é a profundidade humana do estilo de filmar de Ashby.

O filme começa recriando com sarcasmo um ambiente masculino de bebedeira e vulgaridade. Alterna o casamento de um marine que está para ir para o Vietnã (consciente de seu patriotismo) com cenas de um endoidado aleijado que se recupera das sequelas vietnamitas num hospital. Isto antes dos créditos. Após, a história: a mulher do marine primeiro se afeiçoa ao aleijado, depois o ama, finalmente transa com ele, em epílogo põe em xeque as relações amorosas e familiares na era do Vietnã. Jane Fonda, então no auge de sua maturidade, como mulher e como intérprete, tem um de seus desempenhos básicos, e a cena em que ela recria um orgasmo diante das câmaras, mesmo que tocantemente ingênua, é uma peça notável de cinema graças ao senso de gestos da atriz. Jon Voight talvez tenha aqui sua mais notável aparição no cinema. E Bruce Dern compõe com altivez seu tipo militar. Os três estão admiráveis naquela cena quase ao final em que marido e esposa são inesperadamente convidados à reconciliação pelo próprio amante dela; o que pode haver de patético, artificial ou constrangedor neste fio melodramático de roteiro é vencido com brilho pelo elenco e pela sobriedade da direção de Ashby. Ainda sobre o elenco, é de notar o tipo neuroticamente trivial vivido por Penelope Milford, um nome que submergiu no esquecimento de Hollywood.

O que acontece de autenticamente notável em Amargo regresso, o que os anos se encarregaram de fazer regressar sobre o filme o epíteto  de obra-prima é a forma sutil e aguda (algo pouco comum na brutalidade formal de Hollywood) com que Ashby retrata a transformação de duas pessoas a partir do relacionamento que se dá entre elas. Nem eu (mais interessado na época nos artifícios intelectuais do cinema europeu, algumas vezes sem a vida que pulsa num filme de Ashby) nem Kael (mais interessada em coisas mais gordurosas e palpáveis do cinema, como Vestida para matar, 1980, do americano Brian De Palma) nos demos conta de que as aparentes facilidades de soluções formais e temáticas de Amargo regresso eram fáceis somente na aparência: o trabalho humano e artístico de Ashby é na verdade árduo, mais do que se pensa ao ver seu filme.

Na agudeza e engenhosidade emocional de revelar as modificações íntimas de Sally (a esposa do marine) e Luke (o aleijado de guerra) Amargo regresso se aproxima das intenções e percepções de Um dia muito especial (1977), do italiano Ettore Scola, onde o envolvimento dum homossexual perseguido pelo regime fascista com uma clássica dona-de-casa italiana vai modificar a alma das duas personagens. É o que acontece com Sally e Luke e suas relações em Amargo regresso: modificam-se um ao outro. E, mais adiante, hoje em dia, fora de seu contexto de gestação, Amargo regresso é um filme que tem o condão de mudar certas atitudes íntimas do espectador. Como todo grande filme.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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