Um Filme Sobrevivente

Iracema, uma Transa Amazônica é um dos símbolos do próprio cinema brasileiro. Mal disposto, estomacal, inconcluso, incompleto

17/01/2018 08:06 Por Eron Duarte Fagundes
Um Filme Sobrevivente

Jorge Bodanzky

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As relações de censura do governo militar brasileiro com o filme Iracema, uma transa amazônica, rodado em 1975 por Orlando Senna e Jorge Bodanzky e só liberado para exibição no país em março de 1981 (aqui em Porto Alegre foi visto alguns meses adiante, em junho), determinam muito da própria estrutura de narrar que vemos nas imagens: este lapso entre o ato de filmar e o contato com seu público traz pegadas na forma com que a posteridade encara o filme. Assim como Cabra marcado para morrer (1984) traz para sua linguagem fortes relações com o aborto provocado pelo regime político do país a um filme de camponeses realizado nos anos 60 pelo mesmo Eduardo Coutinho que agora constrói seu novo filme em torno da busca dos vestígios de seu velho filme.

Iracema, pois, continua a viver deste interstício que vai de 1975 a 1981, da “abertura lenta gradual” às tensões sociais que começam a explodir no início dos anos 80. Naquele tempo, como se diria em termos bíblicos, a opção documental dos realizadores parecia suja, irregular, a montagem expunha grãos de areia para tirar qualquer limpeza formal da imagem, a dramaturgia era bastante solta, na primeira terça parte as alternâncias das histórias de Iracema, a descendente indígena, como a própria atriz, Edna de Cassia, e Tião, o “Tião Brasil Grande”, um malandro caminhoneiro que percorre o país em busca de se dar bem, criatura na pele de Paulo César Pereio antes de se tornar um enferrujado estereótipo de si mesmo, são contadas em enxutos porém soltos sintagmas alternados, até o encontro dos dois, quando inicia a segunda terça parte e Edna e Tião cruzam a estrada a bordo do caminhão sem uma orientação específica; um corte narrativo brutal se dá no limiar da terça parte final, quando Tião joga a índia na estrada, para a plena prostituição, e Tião, um protagonista, desaparece de cena, deixando a narrativa vagar nas mãos de Iracema; descomposta, sem sangue, e Tião só vai aparecer de novo bem no fim, embriagando-se com as índias. Todos os elementos para um desajuste narrativo estão em Iracema, inclusive a direção provocativamente desleixada dos realizadores, sem aquela coordenação de circunstâncias aleatórias que há no francês Jean Renoir ou no italiano Ermano Olmi, dois criadores que trazem para sua ficção a naturalidade documental e os atores não-profissionais, próximos mentalmente das personagens, como se pretende fazer em Iracema. No entanto, revisto décadas depois, se vê como estes aspectos desparelhos da linguagem do filme lhe dão um frescor único, um autêntico cheiro aborígene, e se encaixam notavelmente neste nosso olhar que sofreu intervalo entre 1975 e 1981. Em 1980 Carlos Diegues realizava outro filme para percorrer o Brasil, Bye, bye Brasil, mas era histriônico, tinha uma descontração mais aberta e limpa; o descontraído em Iracema corrói o olhar do observador, dilacera-se: mas sobrevive, ainda que em feridas, que fazem parte de seu processo e o fazem crescer  mais a cada revisão.

Iracema, uma transa amazônica é um dos símbolos do próprio cinema brasileiro. Mal disposto, estomacal, inconcluso, incompleto, seu começo não começa nada narrativamente, seus andares vão a esmo, a história de Iracema e Tião e outros seres resta suspendida pela metade como um excerto de vida. Há um olhar enviesado para uma outra Iracema, do século anterior, da literatura romântica indianista: a virgem dos lábios de mel do romancista cearense José de Alencar vai transformar-se, 110 anos depois, numa índia prostituída, desdentada, de beira de estrada, expelida com asco pela selva, sem asas de graúna e sem um horizonte em que uma serra azule. Ao invés de fazer a adaptação literária bem-comportada exigida pelos meados anos 70, Bodanzky e Senna se valem de algo muito estimado pela propaganda oficial de então, a construção megalomaníaca das estradas da Transamazônica, para comparar esta intenção governamental a uma pornografia: uma transa amazônica, a transa do malandro homem branco brasileiro com a selvagem mal aculturada. Na cena final Tião se manda com seu caminhão; e ouvimos a índia xingar muitos palavrões para ele. O filme na verdade tem alguma coisa de um palavrão contra quase tudo fazemos, na sociedade e no cinema; mas estes palavrões são um pouco atenuados pelo espírito de malandragem que, vindo de Tião, perpassa a narrativa. A censura desconfiou das intenções dos diretores, viu assombrações maiores do que as que de fato haveria ali; mas estas assombrações construídas, cresceram mais do que o tamanho que exibiam em seu tempo e hoje a história parece mais cruelmente grotesca do que em 1981. A censura, neste caso, anteviu o futuro perigoso do filme.

P.S.: Frases da época resgatadas sarcasticamente pelo filme. Ufanistas. “Brasil, ame-o ou deixe-o”, um decalque colado no para-brisa do caminhão. “Ninguém segura este país”, frase dita por Tião, sorrindo-se e sem se mover, enquanto seus trabalhadores carregam pesadas tábuas para a carroceria do veículo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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