Retrato do Arcaísmo Provinciano em Linguagem Refinada

O romancista fluminense Cornélio Penna é um dos mais dotados para a narrativa que tivemos no país

09/03/2017 22:12 Por Eron Duarte Fagundes
Retrato do Arcaísmo Provinciano em Linguagem Refinada

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O romancista fluminense Cornélio Penna é um dos mais dotados para a narrativa que tivemos no país. E no entanto, para todo o sempre, como José Geraldo Vieira ou mesmo Lúcio Cardoso, permanece à margem das referências mais obrigatórias da literatura brasileira. Talvez a exigência de seu texto incomode um pouco os mais superficiais; talvez porque, diferentemente de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico Verissimo ou Jorge Amado, o mundo que ele retrata tem um aura fantasmagórica que foge aos interesses da estima intelectual estereotipada de nosso meio. Mas eu tenho em grande conta a perícia de Penna para a função de narrar, que não se peja de utilizar uma riqueza de imagens verbais e inesperadas e tensas construções sintáticas para expor um universo de pessoas tão pobre quanto remoto.

Repouso (1948) é um de seus grandes livros. Escreveu pouco, é pouco evocado, mas seu brilho exala raridade. Nascido no fim do século XIX, na cidade imperial de Petrópolis/RJ, tem-se a impressão de que Penna resgata um pouco de sua infância, seja ela nebulosamente verdadeira, seja ela arraigadamente mítica (como é hábito em sendo infância). “Muitos anos depois, quando queria recordar o tempo que passou no Jirau, eram apenas essas horas lentas, pesadas, vazias de presença, de calor humano, que lhe vinham à memória, e lhe contavam uma história distante e estranha, em salmodia surda, veemente.”

Dodôte é a figura central do romance. Uma sinhazinha do campo. Ela abre o romance assim: “Quando Dodôte se aproximou da janela, já sabia que a rua estava deserta, e sabia também que a sua solidão se tornaria ‘real’, se olhasse para os dois extremos da pobre via, que se perdiam, de um lado e de outro, na mata distante, negra e fechada pelas montanhas.” Urbano vai ser seu par masculino. Ele parece a primeira vez assim: “Urbano ficava sentado a um canto e acompanhava com olhos opacos os seus movimentos.” Os movimentos que Urbano acompanhava eram os movimentos de Dodôte. Como o leitor: que vê o mundo pelos olhos (e pela memória de Dodôte). Mas nada de olhos opacos: os olhos do leitor são deslumbrados pelas frases que “entoa” (qu’entoa?) Penna. No mundo de palavras de Penna, às vezes Dodôte se perde. Como quando diz algo à velha preta que a criou e nota que criou um dissabor nascido da incompreensão do que se diz. “Dodôte deixou-a ir sem tentar retê-la, tendo, entretanto, visto bem que a magoara, que não se fizera compreender.”

Certos trechos do romance são embalos sintático-verbais, é a linguagem que parece catar as cenas; como certa vez anotou o poeta francês Alfred Musset, “canções para pôr em música”. Não a musicalidade fácil e sonora, mas aquela entranhada de certos segredos das relações entre as artes. “Lembrava-se confusamente, e sua memória de menina era cheia de espaços brancos, de abertas e de segredos que pressentira e não aprofundara. Lembrava-se que as duas senhoras, mãe e filha, tinham chorado muito, sem que pudesse compreender tudo que diziam. Ficaram em sua mente apenas algumas palavras soltas, que a tinham  amedrontado, sem que ela mesma soubesse por quê.”

De fluxo em fluxo, chegamos ao fim do texto da história. Urbano morreu. Dodôte está, na cena final, para parir a criança que Urbano, o marido, lhe depositou no ventre. Mas Dodôte está preocupada com o nascituro e pergunta ao médico, após o nascimento: ‘meu filho é aleijado?’”. Não é. Ela está aliviada. Mas está também morrendo, sua morte de parto. Espera não sofrer. Sua frase derradeira é um consolo e remete ao objeto inicial do romance: “Meu filho será meu repouso!” A narrativa é então suspendida pelo narrador: não veremos a morte da personagem, nem mesmo sabemos se ela de fato morreu. Quem há-de?

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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