A Onomatopeia do Cotidiano
O neoconcretismo do maranhense Ferreira Gullar não deixa de namorar o velho simbolismo do catarinense Cruz e Sousa
O neoconcretismo do maranhense Ferreira Gullar não deixa de namorar o velho simbolismo do catarinense Cruz e Sousa. O Brasil de Sul a Norte. O Brasil do século XIX ao século XX. Mas nada tão diferente, apesar de propósitos e identidades próximos. O verbo do catarinense é exaltado e onde os acessos do leitor são complicados, por suas palavras raras, por sua sintaxe inusual. O texto poético de Gullar é pós-modernista, mais do dia e do chão, sem embargo do inesperado de algumas imagens do concreto brasileiro; há um lado oral em Gullar que de maneira alguma Cruz e Sousa poderia ter conhecido. Mas o leitor aproxima um do outro, brasileiros distantes, ao sentir o poder simbólico das sílabas. A abertura de Poema sujo (1976), que Gullar escreveu em seu exílio em Buenos Aires, Argentina, em 1975, é característica deste anseio do poeta por captar uma onomatopeia do cotidiano, o onomatopaico poético; Cruz e Sousa tinha instantes assim, de captação dos sons da vida, o som do violão por exemplo, e Ferreira Gullar sai no rastro dos sons de sua infância numa longínqua São Luís do Maranhão utilizando muitas vogais, especialmente o “o”, num ritmo muito brasileiro.
“turvo turvo
a turva
mão do sopro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul o cavalo
azul
teu cu”
A última palavra desta digressão em verso livre é uma onomatopeia do sexo: o cu. Como se esta região do corpo simulasse o próprio ato sexual. E o texto seguinte, uma prosa em andamento poético, algo intermediário entre verso e frase habitual, segue para uma imagem-metáfora da mulher-desejo. A gengiva é comparada à genitália feminina. “tua gengiva igual a tua bucetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma estrada para.” No texto de Gullar, um concretista, a disposição gráfica das orações é fundamental para o espírito poético passado ao leitor. Na imagem levantada pelas palavras o leitor superpõe, como no cinema, duas imagens vermelhas, sanguíneas: a gengiva e os lábios que se abrem (sorriem) no centro do corpo, prontos para acolher o sexo. Os orifícios do corpo humano se confundem. Esta alegria lúbrica do poema traz junto as sujeiras da vida, e a estas sujeiras (bosta de porco) se deve uma parte da grandeza do poema, uma onomatopeia das coisas comuns. Entramos em algumas curvas do narrador poético em êxtase.
“a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa”
“a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas”
Ferreira Gullar, poeta brasileiro, maranhense, nordestino, morto no Rio de Janeiro em quatro de dezembro de 2016, aos 86 anos de idade, faz em Poema sujo seu canto do exílio. Como outrora seu patrício maranhense Gonçalves Dias o fez cantando um Brasil selvagem. Gullar cantou do exílio o Brasil árido de sua infância.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br