O Estmago Dirige o Filme
O mineiro Ernane Alves escreve, dirige, interpreta (ele o protagonista) e produz Otto (2016), uma produo margem de tudo o que se faz presentemente no cinema brasileiro


O mineiro Ernane Alves escreve, dirige, interpreta (ele é o protagonista) e produz Otto (2016), uma produção à margem de tudo o que se faz presentemente no cinema brasileiro e cujo frescor duma inventividade praticamente instintiva merece a atenção daquele espectador que busca algo novo ou ao menos diferente. Desde seus inícios como cineasta, Ernane se aproxima do veio amadorístico, primitivo do cinema; arriscando tropeçar sem medo, podendo aqui e ali provocar uma certa dificuldade de aproximação à sensibilidade costumeira para a linguagem cinematográfica, Ernane tem um jeito desabusado para encarar o possível público de seus filmes; nota-se a força do instinto cinematográfico em sua posição como diretor de cinema, seu ato de filmar oscila entre o naturalista e o simbólico e o resultado é muitas vezes próximo do fantástico, adjetivo que tanto define o cinema em si, nada mais fantástico do que uma imagem em movimento, quanto aquilo em que o cinema pode transcender, fazer coisas acima do habitual. Não é por acaso que, já a partir da cena de abertura, o palhaço e o circo dão seu ar da graça, com o próprio Ernane, que atua dirigindo-se num desempenho que está sempre escorregando indelevelmente pela natureza da imagem, se pintando de elemento de circo e simulando os gestos tão ingênuos quanto sutis do mestre dos palhaços numa tela de cinema, Charlie Chaplin.
Ernane expõe aos trovões tanto sua linguagem cinematográfica (que se vai afastando das coerências e continuidades comerciais) quanto sua própria persona cênica. Como palhaço, como o amante de Samanta, como o galanteador da grávida Paula, como o brigão dentro de um bar, Ernane como ator é tão narcísico quanto desglamurizado; expõe o corpo desejado e tatuado de Kicila Sá, mas acima de tudo não tem pudores de dar à câmara seu próprio corpo, nu, ora emborcado na cama, ora de frente com a genitália naturalmente visível. Otto tem erotismo e experimentação. A experimentação de Otto o aproxima um pouco da nouvelle vague. As dissociações entre som e imagem, por exemplo. Num procedimento que se reitera, em muitas cenas os sons dos diálogos surgem antes da cena a que se referem, durante uma cena anterior, e depois se repetem na sequência a que correspondem. É um artifício de linguagem interessante e que desorienta a maneira habitual de ver e ouvir cinema. Na verdade as falas e os sons em geral surgem na imagem quase como rumores. Lembra um pouco certas utilizações formais do ciclo marginal no cinema brasileiro nos anos 70. Mas transcendendo para o estômago alimentado pela maneira de tratar a imagem em geral nesta segunda metade do século XXI.
Entre tropeços e avanços, lidando habilmente com sua própria precariedade de filmar em alguns momentos, Otto propõe a trajetória duma personagem urbana brasileira contemporânea em seus delírios artísticos, sentimentais, eróticos, onde não sabemos bem para que lado vamos. Não é assim o Brasil de hoje?


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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