Cinema de Bombachas
Noticia-se aqui no sul do Brasil que estão lançando em DVD os filmes protagonizados pelo cantor nativista gaúcho Teixeirinha
Noticia-se aqui no sul do Brasil que estão lançando em DVD os filmes protagonizados pelo cantor nativista gaúcho Teixeirinha: as canções e os filmes de Vítor Mateus Teixeira, estes dirigidos por diversos diretores (como os filmes do grupo televisivo Trapalhões), foram sucessos popularescos nos anos 60 e 70 do século passado. Eram narrativas grosseiras, filmadas com pressa e desleixo, interpretadas de maneira rasteira e constrangedora por Teixeirinha e seus comparsas, mas que, utilizando o imaginário regionalista local, chegavam ao coração das massas, nas quais este articulista, menino-adolescente, se incluía, um pouco a contragosto mas instintivamente. No fundo todos os gaúchos daqueles anos fomos marcados por Teixeirinha, que era um artista medíocre, mas na verdade o que representava era nossa mediocridade coletiva.
Tuio Becker, no prefácio de seu livro Cinema gaúcho: uma breve história (1986) aponta sua iniciação no universo cinematográfico porto-alegrense. “No inverno de 1972, durante uma reunião em casa de amigos, Antônio Augusto Fagundes me entregou o roteiro de O negrinho do pastoreio dizendo: ‘O papel do filho do estancieiro, aquele menino ruim, é teu’”. Antônio Augusto é um pouco herdeiro das fanfarronadas e gauchadas de Teixeirinha. Tuio é um intelectual do cinema. Daí se vê o poder do popularesco regional na mente gaúcha.
O escritor pelotense João Simões Lopes Neto é autor duma literatura rural gaúcha que, pela criatividade da captação da linguagem do campo, tem interessado aos estudiosos. Simões Lopes opõe-se à ficção de texto urbano (ainda quando ambientado no campo) de Erico Verissimo. Não por acaso Antônio Augusto buscou num conto de João Simões (por sua vez retirado duma lenda gauchesca) assunto para seu filme.
Vivemos em círculos. Acabamos um pouco fazendo sempre um cinema de bombachas. Mesmo dentro dum sistema de produção do século XXI, outro gaúcho, Henrique de Freitas Lima, não foge às primitivas gauchadas ao encenar Simões Lopes; o Contos gauchescos (2012), de Henrique, dedicado convenientemente a seu falecido pai, o procurador de Justiça Henrique Dias de Freitas Lima, parece muitas vezes aqueles desengonçados teleteatros onde o cinema e a televisão brasileiros ainda não tinham aprendido a falar; o belo texto de Simões Lopes na boca dos atores de Henrique se desmancha dolorosamente, como num precário teatrinho de colegiais de fim de ano, e somente no episódio “Contrabandista” surgem intérpretes como Nelson Diniz e Ingra Liberato capazes de driblar um pouco (e até certo ponto) os problemas da bombacha em cena.
Não se diga que Henrique escolheu mal os contos. Depois de abrir o filme com o documentário de Pedro Zimmermann sobre a vida e a obra de Simões Lopes Neto (esta parte documental foi apresentada há alguns anos num auditório da CEEE, onde trabalho; o diretor estava presente à apresentação), Henrique filma “Os cabelos da china”, “Jogo do osso”, “Contrabandista” (este remete em seu final, com o vestido de noiva manchado de sangue trazido pelo cadáver do pai da noiva, assassinado na violenta fronteira de antanho com o Uruguai, ao teatro morbidamente melodramático do espanhol Federico García Lorca) e “No manantial”, que estão entre os mais festejados contos do pelotense e que contêm “matéria cinematográfica”, sim, por sua vivacidade visual. O que ocorre é que Henrique, sabe-se desde o Super-8 Tempo sem glória (1984), visto num precário auditório da Aliança Francesa na João Manoel, não tem mão cinematográfica.
“Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.” está em “Trezentas onças”, um conto de Contos gauchescos que Henrique promete filmar proximamente. Esperemos, enfim, que o cineasta saiba melhor aproximar-se do real imaginado de Simões Lopes, para usar duma imagem do título do prólogo dirigido por Zimmermann.
No episódio final, “No manantial”, nova oportunidade de ver um ator que está em cartaz em outro filme na cidade, Porto dos mortos (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro: Rafael Tombini. As possibilidades de rendimento do ator são bem melhores no filme de Davi do que no de Henrique: isto tanto se deve à capacidade visual de Davi quanto a um certo engenho em preparar o ator. Se Contos gauchescos, por suas origens, traz embutida a estima intelectual fácil (aquela coisa de filmar um clássico literário), a essência cinematográfica está muito mais na realização marginalizada e inquieta de Davi. E é bom que Contos gauchescos traga em seu bojo um conto de assombração em seu fim, “No manantial”; a torta ingenuidade do visual de pesadelo de Henrique choca-se com a quase metafísica do arrepio que Davi entrega à sua câmara.
Sinal dos tempos: o cinema de bombachas pode ter melhorado tecnicamente, mas continua constrangendo o observador mais atento.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br