O Acidente Incidental

O acidente vai por as relacoes ?ntimas de suas criaturas construidas a partir da relacao entre as imagens

26/11/2023 11:47 Por Eron Duarte Fagundes
O Acidente Incidental

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As imagens iniciais de O acidente (2021), filmado em Porto Alegre pelo gaúcho Bruno Carboni, se põem a descrever, com um cruzamento de planos e movimentos vagaroso e preciso, o episódio que vai deflagrar todas as relações de tensão entre as personagens do filme e mergulhá-las em sua autodescoberta. É um evento que se dá no trânsito de veículos dum centro urbano, criando exasperações incongruentes entre os indivíduos, costumamos chamar acidente a tudo o que envolve um fato de trânsito que dá em danos materiais ou machuca fisicamente as pessoas; mas no caso de O acidente estamos diante dum incidente, um jogo entre o acaso e o provocado diretamente: Joana, uma ciclista, vê um carro cortar-lhe a frente, enervada busca a motorista entre os veículos, tenta falar com ela, põe-se na frente do carro, a motorista acelera, parte com o carro para cima da ciclista, a ciclista agarra-se ao capô, depois a ciclista cai na rua ferida, a motorista do carro segue adiante; um menino, o filho da motorista do carro, está no banco de trás e filma tudo, o vídeo vai ter na internet. O acidente, debruçando-se sobre o incidente em sua gênese de acidente, é, em sua ontologia visual, um questionamento do olhar e os conceitos (acidente, incidente) que lhe damos.

Este incidente de ponto de partida lembra certos filmes da matriz naturalista do francês Jean Renoir: um incidente final depara-nos a construção dramatúrgica e a intimidade das personagens. Depois, o andamento rítmico de O acidente vai pôr as relações íntimas de suas criaturas construídas a partir da relação entre as imagens, o que diz uma imagem posta diante da outra, captando o que se esconde nos meios-diálogos fornecidos pelo roteiro, numa abstração à maneira de Robert Bresson. Para bem fazer o que precisa neste processo de narrativa visual agudo e profundo, o realizador se vale de sua perícia em colar os planos, fazer a montagem de um filme. Carboni é essencialmente um montador, como, em outra geração por aqui, é Giba Assis Brasil. Codirigindo Quarto de espera (2009), um filme de curta metragem, com Davi Pretto, imagino que a sofreguidão criativa aqui nasça muito dos atributos de montador de Carboni, que fez montagens em outras produções gaúchas, em Morro do céu (2009), de Gustavo Spolidoro, e nos recentes Casa vazia (2021), de Giovani Borba, e Depois de ser cinza (2023), de Eduardo Wannmacher. É perceptível em O acidente o rigor de montagem, rigor que conduz à abstração e às exigências do olhar.

Joana é casada com Cecília, ambas construíram um processo de gravidez em que o corpo de Joana carrega um filho delas. Elaine, a motorista que atropela Joana, está separada do pai de Maicon, seu filho que filmou o ocorrido no trânsito entre Joana e sua mãe, e briga com seu ex-marido pela guarda do filho. Este ex-marido procura Joana para que ela conte numa audiência judicial o evento do atropelamento para o favorecer na busca da guarda do menino. As relações centrais se dão nas tensões entre Joana e Elaine mas a aproximação mais forte se dá entre Joana e Maicon, ambos introspectivos, quase indecifráveis. O círculo sentimental entre os seres humanos que circulam pelas imagens de O acidente transbordam de sua banalidade para buscar uma outra coisa: o espírito da atual sociedade brasileira, suas neuroses e incongruências, vistas na margem de anotações individuais.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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