Eis o Livro
Entao: eis o livro que deu a historia para um classico do cinema dirigido pelo ingles Ridley Scott
Então: eis o livro que deu a história para um clássico do cinema dirigido pelo inglês Ridley Scott. O livro: o romance de ficção científica Androides sonham com ovelhas elétricas? (Do androids dream of electric sheep?; 1968), escrito pelo norte-americano Philip K. Dick. Vítima ao mesmo tempo do preconceito contra o tipo de fantasia do gênero e do sucesso e prestígio do filme que lhe sucedeu. É certo que o trajeto midiático pode trazer um conhecimento ao livro de Dick que em outras circunstâncias não teria; mas é de se perguntar: quantas pessoas que se entregam à aventura fílmica de Scott se empenham em atravessar as páginas de um romance?
No entanto, é uma bela e densa narrativa, para além de seu sucessor cinematográfico. O texto de Dick se alinha nas extravagâncias das situações de ficção científica; porém o escritor, muito mais que uma proposta de mero entretenimento, aprofunda tensões estranhas que em alguns momentos parecem originárias de um universo tão remoto quanto o do romancista tcheco Franz Kafka. “Em um edifício gigante, vazio e decadente, que certa vez abrigou milhares de pessoas, uma única TV anunciava seus produtos para uma sala inabitada”. Entre o cotidiano inusitado e a imaginação delirante, o romance é um enviesado questionador do século XX. Mas, depois das complexidades, volta-se para as coisas simples: “E, sentindo-se melhor, finalmente preparou para si mesmo uma xícara de café pronto e quente.”
AO FILME
{A “BLADE RUNNERIZAÇÃO” DO MUNDO
A influência de um filme pode estar circunscrita ao mundo do cinema ou pode estender-se para fora das salas de exibição de filmes. Alguns filmes até podem não ser percebidos, em sua ação sobre as pessoas (atuais ou futuras) quando são lançados, porque têm coisas avançadas para o seu tempo histórico e chegam a padecer da incompreensão de quem os desfruta visualmente. Blade Runner, o caçador de androides (Blade Runner; 1982) foi lançado no verão americano de 1982 (meio do ano) e por aqui em nosso verão (fim de ano, em Porto Alegre seu lançamento se deu no que então chamávamos “pacote de Natal”); sua recepção foi mais ou menos convencional, dividindo os espectadores entre a frieza, as reservas críticas (houve quem se queixasse de sua lentidão narrativa para a ficção científica) e uma simpatia moderada. Com o passar das décadas, a inegável capacidade do filme realizado pelo inglês Ridley Scott para dialogar com o que estava por vir (tanto estética quanto tematicamente) o fez crescer de importância na história do cinema. Hoje, Blade Runner divide com 2001, uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick, outra obra recebida com incompreensão no primeiro momento, o cume da ficção científica no cinema.
Extraído livremente do romance então quase desconhecido Androides sonham com ovelhas elétricas (1968), do americano Philip K. Dick, a quem o filme de Scott é dedicado em memória num letreiro nos créditos finais, Blade Runner faz a criação dum universo cinematográfico muito próprio e que, no calor da hora, dada a inserção comercial duma grande produção de estúdio, se tornava muito obscuro de perceber em suas nuanças e profundidade. É um filme de antecipação e fantasia, como alguns outros filmes vistos pela mesma época, E.T. o extraterrestre (1982), de Steven Spielberg, ou Conan, o bárbaro (1982), de John Milius; mas enquanto boa parte das produções americanas se contentaram com a ingenuidade da fantasia, Scott trazia uma oculta porção europeia de seu temperamento ao propor uma visão crítica da encenação fantástica. Mas ainda ocorre que Blade Runner é uma fusão de gêneros que leva a um inesperado experimentalismo incipiente para produção de estúdio. Traz algo dos filmes de perseguição comuns em Hollywood, especialmente nas sequências em que o caçador de replicantes Rick vai atrás do androide Roy e lá pelas tantas o jogo se inverte, o caçador vira caçado, o caçado é agora o caçador. Temos também o melodrama fatal: Rick, o policial encarregado de eliminar replicantes, se apaixona por uma mulher fatal, a bela Rachael, uma androide. Sombrio, delirante, feérico: mas não é o feérico de O fundo do coração (1981), de Francis Ford Coppola, apesar da ponte de ilações que pode ser construída entre os modos cênicos de Nastassja Kinski no filme de Coppola e as sinuosidades escuras das aparições de Sean Young no de Scott. Nesta fusão de coisas disparatadas, a obra de Scott traz o conceito visual e plástico daquilo que o italiano Fabio La Roca identificou em seu livro A cidade em todas as suas formas (2013): “O cenário de Blade Runner é constituído por uma fusão de culturas num polimorfismo popular em efervescência por uma visão anômica do gigantismo urbano, da ‘cidade radiosa’ cercada pela agitação das multidões perto de uma Gothan City do futuro. Esta visão cinematográfica conquista o espaço de nossa imaginação e se afirma, assim, como um modelo para pensar a cidade contemporânea.” La Roca cunhou uma expressão que dá título ao capítulo em que fala do filme: “a ‘blade runnerização’ do território”. É isto: o filme de Scott, visto agora em seu verdadeiro século, o século XXI, blade-runnerizou o mundo em que vivemos; o que quer dizer, transformou nosso viver no múltiplo caos de coisas cruzadas.
Algumas coisas em Blade Runner são extremamente emblemáticas. Harrison Ford na pele de Rick, o humano que caça androides (seres-máquina, construídos, sem memória ou com memória emprestada dum humano), é a cara de Hollywood: limpo, um homem na guerra espacial, a guerra nas estrelas. Rutger Hauer, o astro holandês que invadiu o cinema americano, é o subsolo de Ford: subterrâneo, densamente macabro às vezes. Hauer é o replicante: ou o implicante. Veio de suas loucas paixões europeias para dentro das imagens americanas. Sean Young é bela, misteriosa, até ameaçadora em sua delicadeza e sensualidade. Daryl Hannah, uma outra replicante, se opõe a ela: Pris, a personagem de Daryl, vive nas ruas, é uma moleque; o tipo cênico de Daryl é uma das estranhezas do cinema americano da época, já em outros filmes. A dialética dos pares amorosos Harrison-Sean e Rutger-Daryl é um dos emblemas construídos por Scott. São coisas que nascem como cinema e chegam a nós antropologicamente. É a isto que se chama “blade-runnerizar” o universo.}
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br