Exorcizando o Luto

Os caminhos de vida e morte se bifurcam complexamente

06/02/2023 04:00 Por Eron Duarte Fagundes
Exorcizando o Luto

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O francês Edgar Morin é o filósofo da complexidade. Seu pensamento traz a agudeza mais completa do século XX: um poeta, um cientista e a dialética do verbo. Ao começar a debruçar-se sobre Edwige, a inseparável (Edwige, l’inseparable; 2009), um relato do luto de Morin após a morte da amada, o leitor não imagina o que virá, imagina sim, imagina uma declaração de amor, digna, sensível, mas à margem das profundidades em que o conhecido pensador tem mergulhado suas meditações. E ele começa passo a passo: “O ninho, o ninho; é assim que Edwige falava de nosso apartamento, ao qual se dedicou com tanto amor.” Ele põe no livro alguns desenhos da amada morta. E os dizeres que legendam esses desenhos: “Amour, poesie, tendresse.” Edwige se assina, para Morin: “Ton oiseau”. De repente, a profundeza do filósofo penetra em coisas escondidas e grandes em seu relacionamento com Edwige: somos pássaros uns dos outros.

Costurado com anotações de diários antigos e memórias, Edwige, a inseparável, conquanto seja a reconstituição da vida conjugal de Edgar-Edwige e do luto que se seguiu à morte dela, pode ser lido como um romance sentimental. Entre choros e reflexões que transbordam, Morin faz esta sua literatura em torno da alma desaparecida de Edwige. Ora racional como um homem de ciência, ora místico e vago como um homem de poesia, Morin torna a esta dialética ao fechar seu caixão de lembranças: a alma dela ainda existe para além da voz da secretária eletrônica no celular? no pássaro do Pantanal ela baixou sobre um passarinho em seus voos e cantos? Crença e descrença, esperança e desespero.

Os caminhos de vida e morte se bifurcam complexamente. “Sonho da madrugada. Estou com Edwige (em nenhum de meus sonhos ela está morta) e penso: ‘Que será dela se eu morrer? Quem irá ajudá-la?’ Tento ver que não encontro ninguém, que fico cada vez mais desolado, corroído. Acordo aos prantos e de repente outra infelicidade me invade, a de que estou vivo, e ela morta. Esta última tristeza, longe de anular a primeira, adiciona-se a ela.”

A literatura de Morin é o canto do pássaro que ele aprendeu com Edwige, a amada que faleceu antes. O hino tem um encerramento doído mas grandioso, que é Pascal mas também é Wagner, aforismo e sinfonia, cola-se no Pantanal brasileiro mas está em Paris. “Fundamentalmente, a verdade do amor nos uniu: se ela antes conheceu tantas incompreensões de amor, comigo vivenciou o desabrochar no e pelo amor, e floresceu de ternura por suas amigas. Não menos fundamentalmente, o sofrimento e a alegria, a infância e a morte nos ligaram.” Em determinado momento de seu livro, Morin se refere à sua presença numa homenagem a um filósofo francês falecido, André Gorz, que também relatou o caso de amor desesperador por sua companheira de décadas, a senectude final dela e assim também a demência daquela mulher amada martirizaram a Gorz, que lhes deu sua solução radical, um suicídio conjunto dele e da velha mulher. Pensar nestes amores que transbordam como os de Morin e Gorz, é um acréscimo de tensão que aproxima filosofia e literatura nos dois escritores. Assim como Simone de Beauvoir, que escreveu sua cerimônia do adeus para Jean-Paul Sartre; religiosamente cética, Simone conclui que “já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo”; mais dialético nas questões finais, Morin busca rever Edwige nos pássaros com os quais dá por aí.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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