Forster e Ivory

O romancista Edward Morgan Forster faz de Maurice um daqueles romances de formacao de que o s?culo XIX detem a melhor receita

28/04/2020 14:16 Por Eron Duarte Fagundes
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O ficcionista inglês Edward Morgan Forster situa sua arte narrativa na confluência de dois séculos, o século XIX e o século XX, pois, nascido no primeiro século, viveu a maior parte de sua longa vida no segundo século referido. Mas é um artista exemplar e profundo, um estilista como Henry James porém um homem afeiçoado ao humano como Graham Greene, um escritor capaz de chegar a este princípio de século XXI com invejável saúde para a posteridade.

Maurice é seu romance póstumo, escrito em 1913 e 1914 e publicado em 1971(Forster morreu em 1970); Forster escreveu toda sua grande literatura nas primeiras décadas do século XX e depois dedicou-se à cátedra e a conferências, falando de seu assunto crucial, os livros de ficção, dando aulas sobre personagens, construções narrativas, o uso do tempo e do espaço no romance. Maurice é tão anacrônico quanto belo e exibe a mestria de Forster para contar uma reflexiva história sobre um tema difícil em 1913, o homossexualismo entre adolescentes dum colégio inglês; cerca-se crítica e historicamente Maurice de um mistério relativamente à não-publicação na época em que foi escrito, o próprio Forster numa nota datada de 1960 revela suas preocupações de recepção de público, o que o levou a conter a edição de seu livro por toda a vida, restringindo a leitura a alguns amigos.

Ocorre que Maurice é um romance pudico e espiritual sobre um evento carnal, o amor de Maurice e Clive e depois o caso de Maurice e Scudder. Forster nunca vulgariza suas anotações sobre o homossexualismo; ele não é o Marquês de Sade nem Henry Miller, cujo choque de linguagem é intenso. Forster é sutil, cheio de entrelinhas: fala com vagar, como um velho sábio, sem os arroubos de Miller, preferindo o cerebralismo a confundir-se com a paixão que está sento encenada. A poesia de linguagem é clássica, foge um pouco da dinâmica da vida, no que ele se aproxima de Henry James, cuja arte de abstrações certa vez Forster ironizou; mas James é inevitavelmente um dos mestres de Forster, a despeito da inserção de algumas liberações estilísticas que Forster impõe à escrita, evitando os excessos matemático-linguísticos de James (herdeiro do obsessivo francês Gustave Flaubert).

O romancista faz de Maurice um daqueles romances de formação de que o século XIX detém a melhor receita. A criatura de Maurice é um aprendiz da vida; a característica aberta e vital de narrar de Forster se instala já no primeiro parágrafo, quando o narrador fala do passeio habitual dos escolares, equiparando-o a uma diversão doméstica e referia a mulher do diretor como uma amável britânica que recebia os alunos numa casa de chá. Maurice segue num ritmo de câmara até o fim, em voz baixa e suave; apesar de profundo e inquietante, nunca é perverso e não deixa de ser alegre, a despeito de suas anotações nostálgicas, como quando fala, no fim do livro, da velhice de Clive, evocando: “O quarto azul cintilava, as samambaias ondulavam. De algum ponto de uma Cambridge eterna seu amigo começou a acenar para ele, todo envolto pela luz solar e espalhando os eflúvios e os sons da primavera.” Maurice, com suas muitas curvas psicológicas, talvez seja o ponto mais soberbo da literatura refinadíssima de E.M. Forster.

Num determinado ano em que três filmes ingleses (Caravaggio, de Derek Jarman, e dois de Stephen Frears: O amor não tem sexo e Minha adorável lavanderia) trouxeram para as telas da cidade visões do homossexualismo, o novo filme do americano James Ivory, Maurice (1987), se diferencia dos demais porque Ivory, ainda que fale dum tema de escândalo e atual, segue fazendo um cinema estilisticamente depurado, em que a beleza da fotografia e os cenários muita vez de cartão postal são elementos incorporados com cálculo mas agudo senso dramático à linguagem. Igualmente é diversa a abordagem que Ivory faz do homossexualismo; enquanto Jarman e Frears colocavam na atitude homossexual o desejo de irreverência, de rompimento com as normas, Ivory fala da natureza humana, da infelicidade do amor impossível entre homossexuais na Inglaterra vitoriana, e isto cria uma tensão dramática (de fundo homossexual) inexistente nos outros três filmes deste comentário.

Com Uma janela para o amor (1986) Ivory descobriu a novelística do inglês E.M. Forster. Maurice reafirma as afinidades entre a escritura de Forster e o cinema de Ivory. Se no filme anterior Ivory realizava ainda uma narrativa fria, como aquela de Os bostonianos (1984), extraída dum texto de Henry James, em Maurice o calor amigo das personagens de Forster aparece com grande força. Em parte porque ao tratar dum tema tão cru quanto o homossexualismo Ivory soltou-se um pouco, já a partir da direção de atores (antes tão seca), em parte porque Ivory passou a contatar mais profundamente com o universo de Forster.

Sem perder sua originalidade de cineasta exigente, preocupado com cenários e maneirismos de época, preso a preocupações já um tanto esquecidas pela arte mercantilista de nosso tempo, é bom ver as nuances que vão transformando o cinema de Ivory. Por exemplo: os beijos homossexuais são certamente mais vorazes que qualquer beijo heterossexual de Uma janela para o amor.

OBS: O filme abre —antes do final dos créditos iniciais— com um velho falando a um jovem adolescente sobre as transformações do corpo na adolescência e a procriação, bem ao velado estilo vitoriano.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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