Fernanda Montenegro em Dois Momentos

A atriz brasileira Fernanda Montenegro fez noventa anos no ?ltimo 16 de outubro

22/10/2019 17:35 Por Eron Duarte Fagundes
Fernanda Montenegro em Dois Momentos

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A atriz brasileira Fernanda Montenegro fez noventa anos no último 16 de outubro. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1929. Popularizada pela televisão, ela pertence à história definitiva do cinema e do teatro brasileiros; Fernanda é uma autêntica peça cultural entre nós. Para homenageá-la, como o fiz com outras duas estrelas internacionais que aniversariaram recentemente, a italiana Sophia Loren e a francesa Brigitte Bardot, analiso a seguir dois de seus filmes. Um deles, um clássico dirigido por Leon Hirszman, Eles não usam black tie. O outro, uma surpreendente aventura reflexiva dirigida há pouco por Murilo Benício em torno do universo teatral de Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto, onde Fernanda, em suas tergiversações cênicas, tem um papel fundamental.

 

A Mãe Operária

 

Se A falecida (1967), extraído do teatro de Nelson Rodrigues, e São Bernardo (1971), buscado na literatura de Graciliano Ramos, eram narrativas fechadas, sisudas, de formas muitas vezes angustiadamente bressonianas de filmar (à maneira um pouco de Robert Bresson, cineasta francês), Eles não usam black tie (1981), uma atualização da peça de Gianfrancesco Guarnieri escrita no fim dos anos 50 para o universo brasileiro e paulista do começo da década de 80, é uma obra bastante mais extrovertida, suas tristezas ou melancolias são mais efusivas ou abertas para o outro, que na verdade é o espectador na sala de cinema e que vai receber as comovidas imagens pensadas e elaboradas pelo cineasta Leon Hirszman com emoção pouco comum entre nós.

O drama operário escrito por Guarnieri em 1955 foi levado ao palco do teatro de Arena, em São Paulo, em 1958. O contexto era a industrialização incipiente do país. Pela mesma época, 1958, Guarnieri interpretou um operário no cinema em O grande momento (1958), de Roberto Santos. A questão social invadia a arte brasileira de maneira muito forte e determinava a própria questão da linguagem cinematográfica, remetendo-a a um realismo que nascia da realidade.

Guarnieri e Leon atualizam o texto da peça para um roteiro adequado às condições brasileiras entre o fim dos anos 70 e o começo dos 80, quando as convulsões sociais partidas do polo industrial da região do ABC paulista, sob a forma de greves, começava a constranger os longos anos de ditadura militar no Brasil. Enquanto preparava Blakc tie, Leon foi à zona dos metalúrgicos paulistas observar os movimentos sociais; homem de cinema, não se contentou com a observação de seus olhos e fez um documentário, ABC da greve (1979/1990), só concluído depois de sua morte e que na época lhe serviu de modulação do espírito para a realização ficcional que queria fazer. Black tie não traz, todavia, para si o ranço documental: assume sua estatura e sua estrutura ficcional mesmo tratando de questões tão diretas quanto as dificuldades dos trabalhadores naqueles tempos confusos e perplexos.

Eles não usam black tie, para além do tema das greves e do desconsolado desespero dos trabalhadores, se detém como centro de seus dramas nas relações problemáticas entre duas gerações, o convicto batalhador social Otávio e seu alienado filho formado por anos de boca-calada na sociedade brasileira; estes sentimentos conflituosos entre um pai e seu filho começam a estourar tensa e densamente no filme numa cena de refeição familiar, Otávio dialeticamente exaltado com seu garoto, Tião (o filho) esgueirando-se matreiramente das armadilhas de raciocínio pronto de seu pai; e entre os dois a dolorida Romana tentando apaziguar as coisas. Estas questões de estranheza e contradição familiar vão criar sua ação dramática mas desorientada e perturbadora quando a greve às pressas programada para uma segunda-feira precipita tudo: Tião fura a greve para decepção de seu pai, a polícia baixa o pau, Otávio é levado para a delegacia, Maria (a namorada de Tião e que está grávida) é agredida pela mãe numa cena à socapa na parte dos fundos do pátio da casa. Esta cena de agressão da mãe à filha é danadamente comovente: como é de praxe em vários momentos do filme.

Mesmo que utilize ainda muito do lado teorético de Leon, Eles não usam black tie evita qualquer estaticidade, se banha sempre em emoção, talvez seja o mais solto e emotivo dos filmes do cineasta, usa descaradamente certas características melodramáticas da emoção mas com profundidade, sem abastardar-se como amiúde ocorre na indústria. E uma boa parte desta capacidade emocional do filme vem de suas interpretações, e não se diz tudo com isto, pois vem antes a direção de atores de Leon que nasce de sua própria cumplicidade com o elenco, sua habilidade de ver a essência da coisa, como definiu Walter Lima Jr. ao elogiar o que há de ricamente espontâneo e de densamente construído na maravilhosa sequência dos feijões no final. Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri têm seus ápices nesta cena, as mãos de um escolhendo o feijão, o cair do feijão da mesa na bacia, as mãos de Otávio passando uma parte do feijão escolhido para Romana, mãos que se tocam, olhares melancólicos (melancolia proletária?), gestual que sai da epiderme dos atores para o colo do público, um espetáculo, uma autêntica montagem de atrações pois Leon confessa ter pensado esta cena como uma homenagem ao gesto de montagem de Eisenstein mas curiosamente esta homenagem não é fria, formalista, dispensa metáforas e tomba diretamente nas almas das personagens. E nas dos espectadores, contritos numa sala de cinema.

 

A ARTISTA CONSCIENTE

 

Mais do que revisitar o universo dramatúrgico de Nelson Rodrigues, o diretor Murilo Benício faz de seu filme O beijo no asfalto (2017) um processo de rediscussão das formas teatrais tempestuosas do autor carioca (embora nascido em Recife, foi com quatro anos de idade com a família para o Rio). No início do filme o grupo de atores que vai reencenar para as câmaras O beijo no asfalto se reúne a uma mesa de trabalho onde, dizendo as falas que cabem a suas personagens no texto rodrigueano, discute o melhor jeito da encenação dentro daquilo que seria o espírito da arte de Nelson; a figura do elenco é claramente liderada (mas sem solavancos) pela atriz Fernanda Montenegro, que numa encenação da peça nos palcos brasileiros em 1962 viveu Selminha (na encenação atual Selminha é interpretada por Débora Falabella); esta mesa de trabalho vai interromper intersticialmente as  cenas da peça propriamente transpostas para cinema por Benício, permitindo aproximações e afastamentos entre as intenções reveladas à mesa e o encenado de fato pelos atores.

Se Fernanda traz o brilho intelectual àquilo que se vê no atual O beijo no asfalto, Lázaro Ramos e Débora, nos papéis centrais, marcam notavelmente a construção de suas personagens, energizando o universo dramático de palavras composto por Nelson Rodrigues. E isto também ocorre com o elenco como um todo. A cena de Débora defendendo a masculinidade do marido de sua criatura, gritando “Todo dia! Todo dia!” (a elipse moralista, que evita a palavra “sexo”, pois a frase seria: “Sexo todo dia!” ou mais agressivamente: “Fode todo dia!”) é contraposta às reflexões de Fernanda sobre o comportamento da personagem que ela interpretara em 1962 e fazendo a ponte entre a moral dos anos 60 e a de hoje, e criando ainda assim alguns elementos de retorno da moral arcaica que bem explicam esta moral arcaica. Então o filme de Benício transcende a simples encenação duma peça teatral para transformar-se nesta estranha ligação entre a arte e as realidades que vivemos fora do palco ou da plateia; é na verdade um dedo enviesadamente furioso para o Brasil dos retrocessos.

Em 1980 Bruno Barreto levou O beijo no asfalto ao cinema, com Tarcísio Meira, Ney Latorraca, Cristiane Torloni e Lídia Brondi. Apesar do artesanato cinematográfico de Bruno, tratava-se duma narrativa convencional, bem-comportada. Justamente o oposto daquilo que é a realização de Benício.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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