A Comicidade Crítica de Renoir

Em A Regra do Jogo a mestria da direção de Renoir atinge seu ápice

15/08/2018 23:47 Por Eron Duarte Fagundes
A Comicidade Crítica de Renoir

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Na sequência inicial de A regra do jogo (La règle du jeu; 1939), o mais belo filme francês, “o credo dos cinéfilos, o filme dos filmes, o mais detestado por ocasião do lançamento e em seguida o mais apreciado até transformar-se num verdadeiro sucesso comercial” segundo François Truffaut, uma radialista narra a chegada de um famoso aviador a Paris. Irritado, ele surpreende quando se diz decepcionado, falando da ausência da mulher que ama (uma burguesa casada com outro) à recepção no aeroporto. Um seu amigo queixa-se da infantilidade do aviador: é um homem capaz de atravessar o Oceano Atlântico, mas perde-se em suas miudezas particulares.

Cuido que a cena de abertura de certa maneira ilumina a ideologia do filme. Como poucos, Renoir nos apresenta na tela as relações entre o privado e o público na vida dos indivíduos. É o cinismo e a hipocrisia que permitem que o privado não enxovalhe o público, e a vida humana siga adiante com razoável saúde; a excessiva sinceridade do aviador, um homem público mas um ser epidérmico, é um episódio insólito, que de cara na narrativa vai perturbar a regra do jogo.

Em A regra do jogo a mestria da direção de Renoir atinge seu ápice. O roteiro múltiplo, capaz de encenar em ritmo vertiginoso (com que habilidade nos planos e nos cortes ele filma a tagarelice francesa!) uma série de tramas amorosas paralelas, tem na decupagem de Renoir um equilíbrio cinematográfico extraordinário. A câmara de Renoir adota um comportamento livre, movimenta-se com especial leveza para ligar os pedaços narrativos; a montagem flui em grande rigor e plasticidade.

Diretor preciso de seus atores, Renoir interpreta a personagem de Octave, um parasita social que transita entre as classes dos patrões e dos empregados e que serve de fio condutor da consciência do filme. Como intérprete, Renoir é tão desenvolto e inventivo quanto como diretor. A visão que o cineasta Renoir tem dos descaminhos da sociedade francesa de entre-duas-guerras topa na criatura de Octave (Renoir-intérprete) seu símbolo mais divertido e perverso.

Diz Renoir que A regra do jogo buscou um contraponto ao estilo de filmar mórbido, melancólico e sombrio que imperava na produção francesa daquele fim da década de 30 do século XX; e acrescia que pretendia reaproximar-se do autêntico classicismo francês. A regra do jogo é um clássico revolucionário: a descontração de seu universo invade suas questões formais, como os movimentos de câmara e os espaços cênicos (o interior e o exterior duma grande mansão burguesa onde as relações de classes sociais se articulam com muita sutileza de observações). Certas cenas básicas do filme, como a sequência da caça, foram muito influentes na história do cinema; Alain Resnais evocou esta futilidade de nobres a atirar pelo campo quando filmou seus caçadores-esportistas numa sequência-intermezzo de Meu tio da América (1980), um filme cuja montagem barroca não esconde as raízes da montagem despojada mas cheia de curvas de A regra do jogo.

Extraindo elementos da comédia popular francesa (enredos sentimentais misturados a pancadarias entre homens rivais que disputam mulheres), Renoir conduz A regra do jogo a uma análise distanciada e impiedosa da convivência entre as classes sociais. Os elementos populares nunca renderam ao filme um sucesso de público, porque na verdade eles estão subvertidos no jogo estilístico do filme. É a mão de Renoir que transforma as tolices ditas pelas personagens numa visão cinematográfica crítica.

O jogo de equívocos (Octave escapa de morrer à mão dum apaixonado ciumento e em seu lugar morre seu amigo aviador, que vai ao encontro de sua amada, que estava antes com Octave e fora confundida à distância com outra mulher pelo assassino – estas trapalhadas sentimentais remetem a uma obra-prima realizada em 1934 por Renoir, Toni, em que uma personagem ingênua igualmente morre por uma mulher no lugar duma personagem cínica) e o humor sutil de Jean Renoir influíram decisivamente na linguagem do cinema contemporâneo. Mesmo obras tão diversas quanto Sorriso de uma noite de verão (1955), do sueco Ingmar Bergman, e Tudo bem (1977), do brasileiro Arnaldo Jabor, pagam tributo ao filme de Renoir.

O aviador, que no início do filme é festejado mas está insatisfeito, termina o filme assassinado. Em sua morte Renoir centraliza as ironias sociais. Na face hipocritamente compungida de Octave a câmara de Renoir alumia o lado escuro da sociedade.

Ainda é Truffaut, cineasta e crítico francês, quem escreveu sobre Jean Renoir, o cineasta francês por excelência: “Isto não é o resultado de uma sondagem, é um sentimento pessoal, Jean Renoir é o maior cineasta do mundo. Esse sentimento pessoal é compartilhado por muitos cineastas e, por sinal, não é Jean Renoir o cineasta dos sentimentos pessoais?” Nenhum dado técnico desmancha minha convicção: A regra do jogo contém mais revoluções cinematográficas que Cidadão Kane (1941), do norte-americano Orson Welles; e esta afirmação torna a grandeza do filme de Renoir desmedida ao medi-lo pelo compasso de outro gigante do cinema.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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