É um Santo!
Ao Acaso Baltasar é visualmente, creio, o mais lírico dos filmes de Robert Bresson
Ao acaso Baltasar (Au hasard Batlthazar; 1966), exibido nos cinemas brasileiros como A grande testemunha, é a Bíblia em imagens de Bresson, aquele filme onde ele depositou toda a profundidade de seu pensamento cristão; e o fez com um vigor estético soberbo, que o eleva à condição de maior cineasta francês de todos os tempos, talvez só igualado por Jean Renoir.
Ao acaso Baltasar é visualmente, creio, o mais lírico de seus filmes. Mas seu lirismo não é o lirismo escorreito de um François Truffaut. É um lirismo denso, um lirismo que nasce de sua própria religiosidade, uma religiosidade que não se oferece a uma vista na superfície mas busca um olhar que aprofunda os achados. É um convite a fugir às trivialidades do mundo; o lirismo monástico de Bresson se despoja tanto das facilidades poéticas quanto de conceitos religiosos sem densidade. Curiosamente, o filme anterior de Bresson, O processo de Joana d’Arc (1962), interpretado pela mesma atriz Anne Wiamzemsky, era sequíssimo, apelava para a inexistência de cenários, a plástica de sua fotografia era dura. Ao acaso Baltasar não foge inteiramente a estas contenções bressonianas, mas adiciona uma emoção diferenciada na imagem (sempre profundamente plástica) e na faixa sonora (tocada pelos acordes intensos de Franz Schubert). São duas obras-primas iguais e diferentes, tão perfeitas e rigorosas, onde podemos perceber a constância e a pessoalidade de um gênio do cinema que reinventa suas formas narrativas em cada enquadramento.
De uma certa maneira, Ao azar Baltasar refaz a trajetória milenar de Cristo. A desilusão com os seres humanos faz que agora Cristo seja um burrinho de campanha. Bresson o acompanha com sua câmara ao longo de vários anos andando de cá para lá nas mãos de diversas famílias do interior agropastoril da França. Baltasar sofre o diabo ao topar com a maldade de muitas pessoas. Jovens violentos dão-lhe surras, ateiam fogo em papéis presos em seu rabo. Baltasar é amado por Marie, que um dia, depois de ser violentada por vadios da localidade, vai embora; a mãe de Marie, após a morte do pai desta por desgosto, está incumbida de cuidar do burrinho e, questionada pelos vadios que depois vão roubar o animal e judiar dele e soltá-lo à própria sorte no meio do campo, a mulher lhes responde sobre Baltasar: “É um santo!”, da mesma maneira que a camponesa vivida por Giulietta Masina em Europa 51 (1952), do italiano Roberto Rossellini, sussurrava da burguesa encarcerada como louca interpretada por Ingrid Bergman e que olhava o povo da janela do hospício: “É uma santa!” A diferença está entre o seco dizer francês da viúva do filme de Bresson e o apaixonado misticismo duma camponesa italiana na obra de Rossellini.
À peregrinação purificadora de Baltasar pelas ambientações aparentemente bucólicas do interior francês (no lugar do bucolismo surge uma outra coisa na paisagem, uma devastação espiritual) corresponde a peregrinação do espectador, que deve assistir ao filme de Bresson como o assistente de uma missa: um ato contrito de fé e salvação. Nas mãos de Bresson, mais do que nunca, o cinema é uma religião. Esta religião, como o cristianismo, vai dar, no final de Ao acaso Baltasar, na figura do burrinho agonizando, ferido, no meio do campo, cercado de ovelhas contritas. Um novo Cristo, claro.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br