As Rosas no Leito de Morte

Mil Rosas Roubadas (2014), de Silviano Santiago, é o romance de um crítico literário, inevitavelmente

15/12/2016 21:37 Por Eron Duarte Fagundes
As Rosas no Leito de Morte

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Mil rosas roubadas (2014), de Silviano Santiago, é o romance de um crítico literário, inevitavelmente. É, pois, escrito com o cérebro, feito de muitas leituras, frequências a salas de teatro e, como homem do século XX, a sessões de cinema. O que salva em boa parte o texto de Santiago de uma certa esterilidade que às vezes insta em intrometer-se na construção da frase e na recepção da leitura é a sensibilidade do homem narrativo. Santiago é o mesmo que escreveu de um livro de João Gilberto Noll que era um romance de ação, mas sem John Wayne. Noll poderia ser uma autêntica referência para a fúria moral e intelectual proposta por Santiago em suas divagações de memória romanesca, mas creio que não seja bem esta sua gênese: falta-lhe a estranheza em curvas da linguagem de Noll.

O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, escritor mineiro como Santiago, citado diretamente num determinado momento de Mil rosas roubadas, abre verdadeiramente o leque que orientou o modelo de construção usado por Silviano Santiago. Se Cyro disfarçou as pessoas circunstantes de sua vida numa narrativa em que a ficção interpreta a memória, Silviano acaba revelando de cara seu propósito: analisar sua própria vida a partir do calor duma amizade (humana, intelectual ou erótica, pouco importa) cuja perda pela morte o marcou. Tanto o marcou que o narrador começa o relato pelo leito de morte de seu amigo. Uma frase lá pelas tantas: “É o corpo em ascensão, a derramar luz pelo ambiente branco, estreito e asséptico, até então policiado pelas máquinas infernais da saúde.” É curiosa a identidade desta expressão, “máquinas infernais de saúde” (que é a parafernália médica contemporânea), com um texto agônico de um homem de cinema, o ensaísta Jean-Claude Bernardet, em seu blog, postagem de 10.04.2015: “A imensa máquina da medicina (hospitais, laboratórios, farmácias, médicos, inseguro saúde, máquinas de diagnóstico por imagem etc. e mais cosméticos, alimentação...) produz a nossa longevidade. Somos um produto dessa indústria. Produto e fonte de riqueza. A máquina precisa manter nossa longevidade para se expandir e lucrar.” Bernardet reclama da parafernália que o mantém vivo, mesmo muito velho, mesmo com a qualidade de vida bastante deformada. O protagonista de Silviano Santiago lamenta que tenha sobrevivido a seu amigo. “Ele me conheceu como eu não me conhecia e eu (reconheço agora ante a presença temível e terrível do anjo da morte) não o conheço por inteiro.”

Para entender estas evocações literárias singulares de que é tecido um romance como Mil rosas roubadas, precisa-se voltar à matriz dos anos 30, a O amanuense Belmiro. O narrador de Cyro anota: “Eis que o amanuense é um esteta: ao passo que há nele um indivíduo sofrendo, outro há que analisa e estiliza o sofrimento.” Cyro, na verdade, acaba tratando melhor estes paradoxos entre a ação e a reflexão romanescas. Silviano, como um autor entre o fim do século XX e os princípios do século XXI, não consegue impedir estas fraturas: não somente ele, nós não o sabemos, nossos voos metafóricos têm outra dinâmica (de escritura e de leitura).

Um dos vetores que surgiram para impor ao homem do século XXI uma nova dinâmica é o olhar no tempo. O olhar no tempo, talvez influenciado por esta imagem-presente do cinema, é quase uma colagem na retina. Lembramos, mas é um pouco como se revivêssemos: escreve-se para reviver. Tem quase nada da atmosfera proustiana de lembranças. No século XXI, excepcional sempre, Proust já parece um romancista datado. Como também aquela lamentação do capítulo 32 dO amanuense Belmiro, onde está a mais proustiana oração de um escritor brasileiro: “Escapou-me ontem, à noite, esta lamentação: acham-se no tempo, e não no espaço, as gratas paisagens. Verifiquei este angustiante fenômeno quando, em 1924, fui à Vila pela última vez. O Borba já havia morrido, a fazenda passara a outras mãos e as velhas já aqui estavam com sua extravagante bagagem.” É diversa uma evocação como esta, de Mil rosas roubadas: “Por ter tomado bomba duas vezes seguidas no primeiro ano científico, eu tinha sido expulso do Colégio Estadual. O Zeca vinha do Colégio Arnaldo por ter sido também expulso, por mau comportamento. Não é difícil imaginar que, no final da sessão no cineclube, aplaudimos vigorosamente Zéro de conduite, filme clássico de Jean Vigo. Estávamos preparados também para endeusar Les quatre cents coups, primeiro filme de François Truffaut, que lançou o jovem ator Jean-Pierre Léaud.” O vetor de época no homem do século XXI diverge daquilo que se passava com leitores e escritores cem anos antes.

O parágrafo final do romance de Silviano Santiago é uma autocatarse para com sua vida e sua literatura. É o texto de um romancista atual que é também um crítico literário atual. É um texto em que o pensamento quer conversar, a duras penas, com a sensibilidade. As frases trocadas, por via de regra, não são amenas: há uma fratura entre o osso sensível e o osso mental. “O anjo deixará que eu sofra e me alegre, que ame até o fim.” Como? “Sentado diante do computador, não sonho mais.” Se não há sonhos, como a vida está estabelecida na página escrita? “Petrificada, imutável. Morta.” Aqui, neste pequeno ensaio ainda mais petrificado sobre a dinâmica duma obra de arte, eu não tenho as Mil rosas roubadas de Silviano Santiago para exibi-las ao leitor: tenho uma visão que foge nas palavras em que vou escrevendo. No fundo tento pôr-me no mesmo cenário de Silviano Santiago, substituo-me a uma personagem, Zeca por exemplo, Zeca sou eu e aí: “Nela, ele e eu estamos sentados num sofá da sala de estar da sua casa.” A imagem é esta: eu e Silviano numa sala de estar em que somos ao mesmo tempo objeto e sujeito do fato literário. Que pode estar morto no momento mesmo em que nasce.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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