Dreyer, um Bispo do Cinema
Durante muitos anos, o cineasta Carl Theodor Dreyer foi, para mim, o autor de uma única obra, O Martírio de Joana dArc (1928), certamente um dos filmes mais perfeitos da história


Durante muitos anos, o cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer foi, para mim, o autor de uma única obra, O martírio de Joana d”Arc (1928), certamente um dos filmes mais perfeitos da história, mas intrigava-me desconhecer o que Dreyer teria feito em seus demais trabalhos: se um homem que atingiria um tal porte de gênio mantivera sempre esta luz de artista. Os cinemas de Porto Alegre não foram generosos comigo nesta cachoeira de anos durante os quais acompanho no mundo: Dreyer foi uma ausência e seus filmes, “vistos” em textos de críticos e historiadores, formaram o que se denomina um “complexo cinematográfico”, complexo no sentido psicanalítico, um sentimento oriundo da frustração.
A existência do suporte do dvd quase transforma o cinema, para o espectador, em algo semelhante à literatura, para o leitor: assim como o amante das letras pode ter à disposição seus livros favoritos, relendo-os total ou parcialmente por deleite ou estudo, o cinéfilo passa a dispor, com o dvd, de suas amadas películas, podendo revê-las integralmente ou examinar mais detalhadamente esta ou aquela cena. A palavra (Ordet; 1955) é um evento na história do cinema; o pensador francês André Bazin, que foi bastante dúbio para com Dias de ira (1943), reconhece que A palavra é um dos poucos filmes que podem ser citados pelos cinemaníacos ao lado das obras-primas da pintura, da música e da poesia sem que o citador ruborize de ridículo.
A palavra é uma poderosa narrativa cinematográfica que gira em torno da fé; dada sua construção formal, com a câmara circulante, girar é o verbo adequado. Não cabe dizer somente que se trata de um filme sobre a fé; a preposição deve cair da sentença, o filme é a própria fé. A fé na transcendência. A fé no cinema. Outro grande espírito dinamarquês, o filósofo Soren Kierkegaard afirma, em Temor e tremor (1843), que “a fé é a mais elevada paixão de qualquer homem”. Kierkegaard aparece citado brevemente num dos diálogos de A palavra. Pode-se dizer que o filme foi rodado sob a inspiração das leituras kierkegaardianas de Dreyer; o sentido religioso do filósofo se aninha nas imagens elaboradamente metafísicas do cineasta. Em A palavra a fé é a palavra que faltava, e esta fé é também uma paixão que se transforma em cinema de inegável pureza, realçada pela delicadeza dos movimentos e pela brancura e pelo despojamento dos cenários.
Poucas vezes uma estética cinematográfica atingiu a perfeição como em A palavra. E não se trata duma perfeição morta, inanimada, cheia de seu próprio formalismo. É uma perfeição pulsante, que dentro de seu extremado controle formal apaixona e enriquece o coração do observador. Esta perfeição se alinha em coisas que Dreyer constrói tanto com simplicidade quanto com complexidade. A palavra tem sua narrativa visual edificada de planos-seqüência que se entrelaçam admiravelmente no senso dramático; estes planos-seqüência são geralmente planos móveis, entremeados de poucos planos estáticos que lhes servem como marcação de território, permitindo uma unidade de espaço e tempo que já havia sido depurada em Dias de ira e onde o movimento de câmara se casa com o ritmo dos movimentos dos atores e das peças de cenário (aquela irrealidade perturbadora da longa panorâmica dos coroinhas cantando em Dias de ira vai topar um naturalismo atroz em A palavra); segundo François Truffaut, Dreyer era admirador do inglês Alfred Hitchcock, e os planos-seqüência móveis de A palavra teriam origem na experiência de Hitchcock em Festim diabólico (1948); a técnica pode ser assemelhada, mas a utilização artística é muito diversa: a mobilidade suave em A palavra procura um espaço íntimo de que Festim diabólico está longe, mas sempre é curioso associar visualmente dois diretores contrastantes quanto Hitchcock e Dreyer.
A dor, o tempo e a fé são os vetores que cruzam pelas imagens de A palavra. A dor surge na figura da mulher que está grávida, adoece, perde seu bebê e está muito mal, à morte, seus gemidos sussurrados são uma das mais belas contemplações sobre a dor que o cinema produziu, e o sueco Ingmar Bergman se valeria de sua influência para os delírios doloridos da irmã enferma em Gritos e sussurros (1973), sem dizer que estes tensos movimentos dos atores pelo plano está tanto em Dreyer quanto em Bergman. O tempo vem no relógio cujo tiquetaque invade os silêncios e as frases de A palavra; o tiquetaque do relógio é outra fulguração visual que irrompe em Gritos e sussurros. A fé está em todas as personagens, religiosos da Escandinávia dos anos 20 cujas diferenças teológicas exacerbam o drama do filme; mas é na figura de Johannes, um dos filhos do fazendeiro, justamente aquele que julga ser uma reencarnação de Jesus Cristo e atravessa as imagens de A palavra com seu vulto sombrio e suas palavras cheias de uma ameaça demente e cortante como se ele e suas palavras fossem um estribilho visual da realização, é nos conflitos de Johannes que a fé exposta em A palavra se torna centro e problema da questão cinematográfica; numa determinada seqüência, o médico que atende a grávida adoentada e os religiosos da casa ensaiam uma discussão sobre a fé, seus poderes, seus limites, opondo o racionalismo científico às necessidades religiosas, é esta seqüência que de certa maneira ilumina a ideologia de A palavra.
Se Dias de ira envereda para um pessimismo brutal diante do cadáver duma personagem, a longa peregrinação final da câmara de A palavra pelo cadáver de outra personagem vai ter a um desenlace mais otimista, embora em momento algum seja o otimismo fácil e precário dos tolos; é um otimismo de luz que não choca as características mais cruéis desta investigação metafísica de Dreyer. Há um certo bucolismo no primeiro movimento de câmara, indo da esquerda para a direita (ponto de vista do espectador) ao longo dum campo onde vislumbramos animais, gramados e uma casa; o profundo hieratismo da cena final dá um sentido místico ao plano móvel do início. A palavra é um filme que se fecha em si mesmo com uma grandeza notável: plasticamente introvertida, a realização de Dreyer gerou muitos seguidores, em Ondas do destino (1996) o dinamarquês Lars Von Trier homenageia Dreyer numa seqüência onde as personagens discutem as palavras e seus significados.
Sessenta anos depois de ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o mesmo ambiente onde (Bazin testemunhou) alguns observadores reclamaram da premiação porque a estética do filme era ultrapassada, A palavra exibe uma revolução íntima da imagem que torna os comentários daquela distante Veneza para lá de obsoletos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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