O Altman Mais Corrosivo
Ironico. Travesso. No entanto, profundamente critico
Poucos filmes do cinema americano, especialmente os ligados à grande indústria, serão tão objetivos e cortantes em sua visão da civilização ianque quanto Cerimônia de casamento (A wedding; 1978), de Robert Altman. O centro da crítica social de Altman é a hipocrisia da conduta do indivíduo americano diante das transformações de costumes na década de 70 do século passado; embora bastante marcado pelas características (sociais e cinematográficas) de sua época, o filme de Altman, tantas décadas depois, permanece no topo duma comédia ácida que sobrevive para além de seu tempo, como um exemplar de observar o indivíduo diante da (ou no meio da) sociedade, um pouco à maneira, comparando coisas tão opostas, de A regra do jogo (1939), do francês Jean Renoir. Mas Altman é enraizadamente americano em sua visão de mundo e construção estética. Assim como o foi Terrence Malick em Cinzas no paraíso (1978). Se Malick ia a certas origens civilizatórias da América, Altman observava sua contemporaneidade; no lugar do rasgo trágico, quase helênico do filósofo Malick, o riso amargo de cronista quase social de Altman. Em Cerimônia de casamento Altman atinge o ponto alto de sua corrosão de filmar.
Quando lançou Cerimônia de casamento, Altman saiu-se com estas observações: “Eu estava filmando Três mulheres quando um jornalista na época me perguntou qual seria meu próximo filme. Como eu não estava de bom-humor, respondi: ‘Vou filmar um casamento. Vou parar com este filme e empregar-me como fotógrafo de casamentos.’ Depois ocorreu-me que a ideia seria bastante boa. Um casamento daria elementos para explorar todas as debilidades da sociedade. Afinal, as pessoas comportam-se de forma diversa quando submetidas a situações formais. Num casamento ou num funeral, a menos que sejamos um rebelde, seguimos as amenidades da cultura.”
O primeiro movimento de imagem da narrativa de Altman é um plano grandiloquente do palco onde se dará a cerimônia de casamento, a câmara ergue-se pelo altar, move-se depois pela igreja onde estão os convidados. O que depois o roteiro de Altman (coescrito com outros três roteiristas) vai seguir é um rosário de relações familiares em torno do casamento: um olhar para múltiplas coisas, algo que o cineasta já exercitara em Nashville (1975) e voltaria anos depois a fazer em Short cuts (1993). Dispersando a atenção da câmara (e do espectador) para fragmentos de vida e situações que nunca chegam a aprofundar-se, Altman, como diretor de cinema, tem o dom de conectar, pela felicidade de sua montagem, coisas que se apartam, nunca permitindo que seu filme se torne dispersivo e não-natural. Modelo agudo do que por aqui chamamos filme-coral (ou filme-mosaico), Cerimônia de casamento faz, de maneira clara, aquilo que era a intenção mesma de Altman: valer-se de um casamento (arquétipo de todos os casamentos na América) para devastar as debilidades da sociedade.
Na trama, duas famílias se cruzam, a do noivo, os Brenner, de origem irlandesa, e a da noiva, os Corelli, de ascendência italiana. Um bispo velho e atrapalhado vai dar o cerimonial religioso. A noiva é desgraciosa, desde o primeiro plano dela que capta o aparelho postiço em sua boca. O noivo é embonecado e um tanto vulgar. As perturbações sucedem-se, numa veia cômica. A matriarca morre no início do filme, mas o médico da família esconde o fato para não atrapalhar a festa de casamento: diz que a velha está dormindo; descansando. Revela-se que a irmã da noiva está grávida, provavelmente do noivo, mas não se tem certeza, pois ela andou com todos da academia. A mãe da noiva tem uma tentação adúltera com um dos padrinhos. Uma das tias do noivo se relaciona com um empregado negro. Como ocorria em Nashville, que também tinha um ambiente-temático central (lá era o festival de música, aqui o casamento), há uma personagem que funciona como uma mestra-de-cerimônia; em Nashville, uma jornalista, em Cerimônia de casamento a mulher que comanda a organização da mesa; em ambos, a atriz Geraldine Chaplin, talvez uma espécie de ponte-talismã entre os dois filmes de Altman. O elenco, naturalmente, é multifacetado: os aspectos patéticos trazidos por Mia Farrow, a extroversão impagável de Vittorio Gassman, a serenidade da velhice de Lilian Gish (a lendária intérprete de O nascimento de uma nação, 1915, de D. W. Griffith), a comicidade à beira do colapso de Luigi Proietti (o mesmo ator que dublou Donald Sutherland em Casanova de Fellini, 1976), o extraordinário pique cênico de Carol Burnett, e por aí vai.
Irônico. Travesso. No entanto, profundamente crítico. Um momento de cinema que nos faz tornar a uma época sem deixar de estarmos em nossa própria e atual época.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br