Bastidores: O grande diretor francês rodou em inglês, pela primeira vez. Ele explica porque: “ Providence é um filme sobre o imaginário e para mim, a língua inglesa dá uma impressão suplementar de irrealidade, de aventura. O diálogo de Mercer é muito estilizado, muito musical, exatamente como eu gosto, por isso comparo meus atores, a um quinteto de cordas...com alguns acordes de piano”. “Se o mundo é verdadeiro para todos, ele é diferente para cada um de nós”, afirma o diretor, “ao contrário do que se escreve, não dou tanta importância à memória. Descobri com Buñuel e Cocteau que se pode filmar o imaginário. Isso que me apaixona, a interpretação da realidade”. A fita conta com a trilha musical do grande de Hollywood, o compositor Miklos Rosza (1907-1995), que fez trilhas de fitas como Ben-Hur, Rei dos Reis, Quo Vadis, O Segredo das Jóias, Pacto de Sangue etc.
Crítica: Depois de sua obra-prima O Ano Passado em Marienbad, Alain Resnais chegou a um beco sem saída, em suas pesquisas como tempo e a memória cinematográfica. Fez digressões pelo cinema político (A Guerra Acabou), fez algumas bobagens (Eu te Amo, Eu te Amo, Stavisky) mas felizmente encontrou sua melhor forma novamente neste seu Providence, um dos mais belos, provocantes e perturbadores filmes de sua obra, mas infelizmente dos menos conhecidos. Como sempre Resnais trabalha em cima de um roteiro de um escritor consagrado, no caso David Mercer, conhecido por Morgan e Vida em Família, utilizando pela primeira vez diálogos em inglês. Não chega a ser um problema. Este é um dos raríssimos casos de um filme de diretor estrangeiro onde o inglês não é um embaraço.
Providence é o nome do castelo barroco em Limoges, de um escritor de 78 anos , Clive Langham (Sir Gielgud, 1904- 2000, escolhido pelo diretor por ser fisicamente parecido com o escritor Graham Greene), que sabe que está morrendo. Durante uma longa noite de agonia, entre espasmos de dor e goles de vinho branco, ele tenta compor seu novo livro. Através de sua narrativa, somos introduzidos aos personagens: seu filho advogado e pedante (Bogarde), sua nora inteligente (Burstyn), o assassino acusado de eutanásia (Warner) e a amante do filho (Stritch) que estranhamente se parece muito com a mãe verdadeira dele.
Durante dois terços do filme, acompanhamos pela ótica do escritor, o desenrolar da história, sem chegarmos a compreender direito as coisas. A imaginação doente e incontrolada do escritor às vezes deixa penetrar na narrativa imagens do mais puro absurdo (o jogador de futebol que vive interferindo na ação) ou mesmo auto-indulgencia (as piadas e aforismos a que ele não consegue resistir). E até de um terror desconhecido (as imagens das pessoas recolhidas a um estádio para serem fuziladas como se fosse no Chile ou na Ocupação nazista).
O que parece apenas uma brincadeira fascinante, mas fútil, tem finalmente sua explicação. As peças caem em seus lugares e compõe-se o quebra-cabeça. Aquela é a véspera de seu aniversário, a ansiedade reflete sua tensão em reencontrar o filho e a nora, na verdade felizes no casamento.
O assassino acaba aparecendo apenas como seu filho bastardo. A amante não existia, era realmente do reflexo do sentimento de culpa do velho pelo seu suicídio.
Numa delicada e idílica sequência de almoço no campo, tudo se apresenta objetivamente. Aquilo tinha sido uma maneira muito sutil de mostrar os laços que existem entre a arte e a vida, capturar a essência do processo de criação literária. Logan nos narrou subjetivamente uma realidade diferente da que se vê objetivamente. Dos seus fantasmas, nasceu o esboço de um livro. O fantástico é que ao acreditar que estava revelando a verdade dos outros, Clive estava era se mostrando a si mesmo.
Depois de uma magnífica panorâmica de 360 graus, Resnais mostra Clive sozinho no jardim de seu castelo refletindo: “nada está escrito”. Talvez uma admissão de sua própria pequenes em decifrar os outros, em brincar de “providência” com o destino alheio, de desvendar o passado e prever o futuro. E de que só no ato solitário de sua criação, é que tem controle sobre o seu mundo, seus fantasmas, sua mortalidade.
Este é um admirável “concerto cinematográfico”. Em nenhum outro cineasta como em Resnais, as imagens, fluem com clareza tão musical. As sequências iniciais já foram vistas como uma citação consciente do início de Cidadão Kane como também de um retorno a seus primeiros trabalhos, notadamente o curta Nuit et Brouillard.
John Gielgud tem o melhor momento dramaticamente em toda sua longa carreira no cinema (ele ganharia um Oscar na comédia Arthur em 81). Dirk Bogarde usa seus reconhecidos recursos de impostação, mas faltam intérpretes mais vibrantes para os personagens femininos, em particular no papel da mãe-amante que não chega a ter a devida dimensão.
Providence é mais uma lição de cinema de Resnais na mesma linha e gabarito que Hiroshima, mon Amour.