Crítica sobre o filme "Show de Truman":

Rubens Ewald Filho
Show de Truman Por Rubens Ewald Filho
| Data: 12/08/2012

Revendo esta edição é que me dei novamente conta que esta é uma obra-prima com frequência esquecida. Eu mesmo a deixei de lado quando fiz um balanço dos grandes filmes do estúdio Paramount. Mas foi confirmar a excelência do melhor trabalho do diretor australiano Peter Weir, que infelizmente não tem tido sorte.

O roteiro original foi escrito por um jovem chamado Andrew Niccol (1934) que escreveu e dirigiu em 1997 o interessante Gattaca e depois Simone, 2002, com Al Pacino, o argumento de O Terminal, de Spielberg, 2004, e ainda dirigiu o corajoso O Senhor das Armas, 2005, com Nicolas Cage (que denuncia o tráfico de armas), e mais recentemente O Preço do Amanhã, In Time, com o Justin Timberlake, 2011 e agora o novo A Hospedeira (The Host, 2013, com Saiorse Rouan).

O roteiro em sua forma original foi recusado por cineastas importantes como David Cronenberg, Sam Raimi. Weir foi quem mais gostou, mas achou que o script deveria ser reescrito até a perfeição (Foram feitas 18 versões enquanto esperavam que Jim Carrey, então no auge da popularidade, ficasse livre. O original, por exemplo, se passava em Nova York). Por isso é tão brilhante e notável, todo amarradinho.

Peter Weir (1944) - Australiano, talvez o melhor representante do cinema de seu país (junto com George Miller, Bruce Beresford e Gilian Armstrong, foi graças aos seus talentos que esse cinema se fez conhecido internacionalmente). Nasceu em Sidney, dia 21 de agosto, estudou Artes e Direito. Depois de uma longa viagem à Europa, de volta à Austrália decidiu trabalhar na TV, onde foi auxiliar de câmera e de produção. Ao mesmo tempo começou a rodar curtas em 1967, que obtiveram sucesso. Estreou na direção com um filme de humor negro: The Cars that Paris (a cidade-título não é Paris, França, mas uma pequena cidade da Austrália).

A seguir seu sucesso foi se confirmando até finalmente rodar, nos Estados Unidos (A Testemunha, 1985), um filme policial com toques de drama romântico que levou o Oscar de Roteiro Original e Montagem, além das indicações para Filme, Ator, Diretor, Fotografia, Direção de Arte e Trilha Musical.

Continuou realizando filmes ambiciosos e de qualidade, tendo grande êxito com Sociedade dos Poetas Mortos, 1989 (ganhou o Oscar de Roteiro Original e foi indicado para Ator, Filme e Diretor). Mas depois deste sucesso O Show de Truman (três indicações para o Oscar, incluindo Diretor), ele foi se perdendo em projetos malsucedidos como Mestre dos Mares (2003), conseguiu várias indicações ao Oscar (venceu Fotografia e Edição de Som, sendo indicado ainda por Direção de Arte, Figurino, Direção, Montagem, Maquiagem, Filme, Som e Efeitos Especiais).

Mas nunca convenceu nem teve as continuações previstas. Retornou ao cinema depois de 7 anos, com Caminho da Liberdade/The Way Back, sobre soldados que escaparam de Gulag na Sibéria. Que também não deu certo. Voces vão verificar na filmografia abaixo outros trabalhos menores que um talento como o dele não precisava ter feito.

Não há dúvida, apesar de outros bons títulos, que este é o trabalho mais controlado, mais perfeito de Weir e certamente um dos melhores filmes do seu ano de produção. Mas aquele foi o ano do hoje já esquecido Shakespeare Apaixonado e do irregular O Resgate do Soldado Ryan e naturalmente também o ano em que foi indicada Fernanda Montenegro por Central do Brasil. Teve ainda o infeliz A Vida é Bela e Além da Linha Vermelha, de Terrence Malik. Ed Harris está muito melhor do que o vencedor sentimental James Coburn, o roteiro de Niccol é muito mais original do Shakespeare Apaixonado e Weir perdeu para Spielberg num de seus melhores dias.

O maior injustiçado até hoje continua ser Jim Carrey, que paga o preço de sua popularidade e não o aceitarem em papeis dramáticos. Truman foi seu primeiro filme a sério (ainda que possa exibir seu histrionismo) logo depois de O Mentiroso, O Pentelho, Ace Ventura 2 e Batman Eternamente (onde foi vilão, The Riddler). Dali em diante teve outros momentos ótimos, em O Mundo de Andy (1999) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (05). Mais aos 50 anos, enfrenta crise da idade e desde então não tentou mais papéis a sério (talvez pelo erro de ter feito o terror Número 23, de 2007). Se bem que O Golpista do ano tenha agradado. De qualquer forma, é um grande talento não reconhecido.

O primeiro achado já é começar como se fosse o próprio show de tevê e não um filme, inclusive os letreiros creditam estrelando Truman Burbank (e não Carrey) e o criador do show Christof (Ed Harris) . É uma manhã ensolarada, aliás, como todas na comunidade à beira-mar quando Truman vai para seu trabalho como corretor de seguros cumprimentando todos os vizinhos, como de hábito. Mas até aquele paraíso perfeito é sujeito a acidentes. Logo de cara cai do céu (dizem que foi de um avião), o que parece ser um refletor de luz. Depois as pessoas não perdem a oportunidade de elogiar produtos como se estivessem fazendo merchandising.

E quando está na praia e começa a chover, chove exclusivamente em cima dele. Mesmo quando se move, o jato de chuveiro o acompanha? Vai custar a se revelar (só aos 57 minutos) que se trata de um show em que Truman é o astro desde que era bebê e há quase 30 anos, tudo gira em torno dele, são atores e figurantes, cenários e fachadas, tudo para criar um faz de conta que dá enormes lucros e mantém o imenso estúdio (que pode ser até visto do espaço, como a muralha da China)!

Truman é casado com uma enfermeira Meryl (chamada de Hannah Gil) que é interpretada pela maravilhosa e naquele momento em ascensão Laura Linney (hoje já teve três indicações ao Oscar). O personagem dele não tem a chance de se explicar ou justificar, assim como o do melhor amigo e confidente desde criança (Marlon, Noah Emmrich), ambos traem porque é isso que fazem (algumas e alguns) esposas e amigos.

A vida segue a rotina, mas Truman não consegue esconder sua vontade de partir em busca de aventuras e principalmente uma mulher que conheceu e flertou na cidade, uma bela (Natasha McElhone, que naquele momento era também uma promessa e hoje está na série Californication, porque ficou viúva e tem quatro filhos para criar). Essa Lauren ou Sylvia declarou amor a ele e tentou denunciar tudo e agora fora do programa está torcendo por ele e o esperando. Percebendo tudo isso, Christof inventou um plano: fez com que Truman fosse responsável pela morte de seu próprio pai, num acidente num iate, de forma que dali em diante se sentiu culpado e nunca mais pode se aproximar do mar. Essa é a barreira que o impede de fugir.

Mas aos poucos com alguns flashbacks, por volta dos 26 minutos, Truman aumenta suas suspeitas (uma outra sacada do filme, cortesia do ótimo fotógrafo australiano Peter Bizou é que há câmeras em toda parte, numa porta giratória, num apontador de lápis e assim por diante. Sempre dando a impressão de que ele está sendo observado, vigiado. Mesmo quando se rebela e muda o caminho (e de repente, vê um cenário com o lanche da equipe onde deveria ter um elevador). Pior ainda quando encontra o pai na rua de mendigo (mas o levam a força, era o ator despedido que queria voltar).

A farsa está para ser revelada e então é o momento de vermos o outro lado, o da produção do programa (e qual não é a surpresa de descobrir que o diretor de tevê, que faz o corte é o hoje famoso Paul Giamatti, já em seu décimo nono filme). Ficamos sabendo então de como tudo começou e se desenrolou, a tecnologia empregada - são 5 mil câmeras! (como contraponto, inclusive fechando o filme, há dois seguranças de estacionamento que ficam vendo TV e ao final sem maior cerimônia já querem sair em busca de outro programa substituto).

Uma das histórias mais interessantes dos bastidores de Truman é o fato de que ele foi rodado em locações na Flórida e que a cidade chamado no filme de Seahaven (e que usa como lema, a frase de Os Três Mosqueteiros, um por todos e todos por um) realmente existe por lá (só não fica numa ilha, na trama precisavam da ponte). E na cidade percebam que cada rua leva o nome de um ator de cinema (Lancaster Square/Praça ou Barrymore Road/Estrada). E também todos os personagens levam nomes de atores: Meryil, Marlon, Lauren, Kirk, Angela etc.

A cidade verdadeira e que hoje é atração turística se chama Seaside e foi descoberta por acaso e praticamente nada se mudou de seu aspecto de cidade pequena do interior, com jeitão de resort (apenas alguns prédios ficaram mais altos, cortesia dos efeitos especiais). Os donos do lugar fazem ponta na mesa do piquenique, Darryl Davis e Robert Davis que herdaram 80 acres de seu avô e inventaram o conceito da primeira casa e do ambiente.

Um dos pontos fortes do filme é sem dúvida a presença de Ed Harris como o criador do show, mostrado não à toa quase como um Deus que habita o 221º andar, e de lá decide o destino de todos. Ed usa uma boina a la francesa para encobrir a careca que lhe dá um tipo especial. Mas ele é uma figura carismática e autoritária (mesmo pessoalmente, é dom dele). Consegue mesmo tornar humano um personagem que poderia ser um vilão caricato e Ed não deixa isso suceder.

O mais curioso é que todas as sequências com ele em seu estúdio foram realizadas depois de todo o resto, na parte final. E quem começou a fazer o papel foi Dennis Hopper. Peter Weir assume que parte da culpa foi dele na escalação do ator e que percebendo que tinha errado teve que dispensá-lo. Sem descrédito para Hopper (já falecido). Houve então a correria para encontrar um substituto e Ed foi sugerido por um agente na última hora quando não havia mais tempo para atrasos. E é seu melhor momento em toda sua carreira (e me lembro de ter conversado com ele em Veneza e previsto que seria indicado ao Oscar, no que ele foi discreto e reticente).

A parte final é muito forte (spoiler) quando Truman resolve enfrentar seu medo da água e parte no pequeno iate (chamado Santa Maria, como a nau de Colombo) e vai pensando em ir para Fiji (repare como a agência de turismo só tem cartazes alertando para perigos e desencorajando as pessoas a viajarem). É quando os ventos e tempestades artificiais (já que se trata de um pequeno lago em estúdio- na verdade, foi filmado num famoso lago ao ar livre que fica nos estúdios da Universal e onde fizeram também o Mar Vermelho, de Os Dez Mandamentos e que em dias comuns é utilizado como estacionamento!).

E a resolução final, aliás, muito boa e simples, contam que foi inspirado na do livro de C. S. Lewis, o quarto volume de Narnia, The Voyage of the Down Treader, que tinha o mesmo final do mundo e a escada para outro. A trilha musical no filme é composta na hora para dar o clima e quem a interpreta é realmente o autor dela, o famoso Phillip Glass.

Jim Carrey improvisou inteiramente seus monólogos diante do espelho. Um detalhe fora do comum: todo o filme foi rodado na proporção de 1.66:1, que o deixava mais parecido com de uma televisão da época (só o primeiro DVD original sai nesse formato, no cinema foi 1:85 e o Blu-ray para 1.78). Outros atores que hoje são famosos e fazem pontas no filme são além dos que já mencionei Peter Krause (virou astro com a série de TV A Sete Palmos), Holland Taylor (que aqui faz a mãe de Truman e faz na TV a mãe dos heróis de Dois Homens e Meio), Phillip Baker Hall (produtor do show, depois ele estaria em todos os primeiros trabalhos de Paul Thomas Anderson). Edição traz o mesmo que veio na especial anterior, making of (como vai terminar em duas partes), os efeitos visuais, cenas inéditas, galeria de fotos, tudo legendado.

O filme ainda foi premiado pelo MTV Awards como Melhor Ator (Carrey). Críticos Londrinos Diretor do Ano (Weir) e Roteirista do Ano (Niccol), Globo de Ouro de Trilha Musical, Ator Coadjuvante (Ed), Ator em Drama (Carrey) e indicação como Melhor Drama, Melhor Diretor e Roteiro, ganhou no European Film Awards como Screen International Award. Também indicado ao Sindicato dos Figurinistas, Diretores, ganhou Bafta de Diretor, Direção de Arte e Roteiro.