Crítica sobre o filme "Laranja Mecânica":

Rubens Ewald Filho
Laranja Mecânica Por Rubens Ewald Filho
| Data: 24/04/2013

É uma boa Idea relançar nos cinemas brasileiros este clássico do mestre Stanley Kubrick (1929-99). Até porque, embora nunca tenha sido oficialmente proibido pela censura brasileira (que aconselhava a produtora Warner apenas a não apresentar oficialmente o filme para sua avaliação), só estreou no Brasil em setembro de 1978, assim mesmo com uma cópia que havia sido feita para o Japão, com bolinhas negras para cobrir os pêlos pubianos e outros lugares estratégicos, mas representantes pessoais de Kubrick checaram a cópia e aprovaram as legendas. O jovem Malcolm McDowell havia sido revelado pouco antes em If de Lindsay Anderson e foi ideia dele usar “Cantando na Chuva” numa cena–chave da fita. Quem prestar atenção verá uma citação de outro filme de Kubrick, “2001” (a capa do disco numa loja). Foi indicado ao Oscar de melhor filme, roteiro e direção. Não ganhou nenhum (até porque a Academia não gostava do diretor). A dificuldade começa pelo título que nunca é explicado. Parece que o autor Burgess (que escreveu o roteiro de Jesus de Nazaré de Zeffirelli e criou a linguagem para o filme A Guerra do Fogo) se inspirou numa velha expressão “cockney” (inglês popular de Londres), que dizia “fulano é doido como uma laranja de corda”. Mais tarde, numa viagem pela Malásia, onde “orang” quer dizer “humano”, lhe deu a ideia de fazer anagramas (“orang”- “organ”-“organizar”) chegando à uma conclusão linguística: ou seja, o ser humano, quando organizado pelo poder dominante vira uma laranja mecânica. Por isso, também o livro e o filme utilizam vocabulário próprio. Segundo Kubrick, o filme poderia ser interpretado de três maneiras:

a) como uma sátira social sobre o emprego de condicionamento psicológico; 

b) como um conto de fadas sobre a Justiça e o Castigo; 

c) como um mito psicológico, “uma história construída em torno da verdade fundamental da 

 natureza humana”.

A sátira sobre o condicionamento parece clara no filme, mostrando que a sociedade se baseia no poder e nas mentiras. Tanto da Direita, quanto da Esquerda e em consequência, um homem condicionado a ser bom em todas as circunstancias seria completamente vulnerável. Diz Kubrick: “Temos uma civilização altamente complexa, que requer uma autoridade política e uma estrutura social igualmente complexa. A ideia de destruir a autoridade para surgir a bondade natural do homem é um critério utópico e “falacioso”. Todos os nossos esforços vão parar em mãos de desonestos, já que a culpa reside na natureza imperfeita do Homem mesmo”.

Assim Laranja é basicamente uma parábola sobre a manipulação do Homem pelo Estado. Conta a história de Alex (Malcolm McDowell), um jovem revoltado, precursor da moda punk, interessado na chamada “ultraviolência”, sexo e Beethoven, que é escolhido para uma experiência de condicionamento, uma verdadeira lavagem cerebral que o torna refratário à violência, fazendo-o vomitar cada vez que se defronta com um ato violento. O tratamento é sucesso embora por engano Alex tenha ficado também condicionado contra Beethoven cuja música servia de fundo para um dos documentários usados em sua cura. E logo o herói se torna vítima da manipulação política dos Partidos, completamente indefeso é levado ao suicídio pela Oposição e depois utilizado pela Situação novamente. O que o filme está querendo mostrar é que no fundo todos nós somos laranjas mecânicas, estamos sendo submetidos a lavagens cerebrais continuas que nos condicionam e governam, às vezes, de forma subliminar a ponto de não tomarmos conhecimento delas. Às vezes de maneiras mais óbvias, através das solicitações da sociedade de consumo. O filme é um brado de alerta e conscientização contra isso, mas talvez tenha errado numa questão de dose. Ao pedir que nos identifiquemos com um herói como Alex, desordeiro e irresponsável. A tendência do espectador é ficar a favor do governo, achando que eles fazem muito bem em transformá-lo num “bom cidadão”. Sem perceber a terrível violação dos Direitos Humanos, a violência cometida contra a individualidade que acontece todos os dias sem que nos demos conta. Assim todo comportamento anti-social, os artistas, os gênios, todos aqueles que fogem da chamada “normalidade” seriam também condicionados da mesma maneira. Esse perigo existe porque Alex é um vilão simpático e não é fácil concordar com um diretor frio como Kubrick, que o apresenta como “o homem natural, no estado que veio ao mundo, sem freios ou repressões. Quando recebe o tratamento de Ludovico, pode se afirmar que este simboliza a neurose, criada pelos conflitos entre as restrições impostas por nossa sociedade e nossa natureza primitiva. Por essa razão, ficamos felizes quando Alex se cura”. Será mesmo que todos se alegram? Alguns nem chegam a entender direito a dimensão da cura de Alex. Essa ambiguidade é um dos problemas do filme que provocou as opiniões mais desencontradas em toda a parte. Certas pessoas se horrorizam com sua violência, mas na verdade ela é estilizada, mostrada quase como um balé, ou “Pop-Art”. Nunca de forma literal, aliás a trilha musical é extraordinária, com obras de Elgar, Purcell, Puccini e naturalmente Beethoven que dá ao filme muito de sua atmosfera.Tecnicamente o filme abusa um pouco de grandes angulares, lentes deformantes, mas tem um extraordinário poder hipnótico. Na enigmática cena vitoriana final, há a busca de uma qualidade ideal, procurada por Kubrick. Diz ele “A Laranja se comunica num nível subconsciente e o público reage diante da configuração básica da história, como se fosse um sonho. E discutem o sentido da cena final. Como os outros sonhos mostravam assassinato, dor e morte, a erótica cena final sugere que de alguma maneira, a mente de Alex se transformou e se apaziguou”. Enquanto o livro de Burgess é uma amarga sátira aos paradoxos do livre arbítrio, o filme continua a provocar discussões. Afinal, temos que defender os que não gostam dele. Se não corremos o risco de todos nós acabarmos virando “laranjas mecânicas”.