Indicado para os Globos de Ouro de diretor, drama e trilha musical, este é um filme inusitado e surpreendente mesmo para Ang Lee, que nos acostumou com surpresas. Ganhou um Oscar por O Segredo de Brokeback Mountain, fez depois um drama erótico de espionagem (o pouco conhecido Desejo e Perigo), uma comédia dramática sobre festival de rock (Aconteceu em Woodstock). E sua carreira anterior inclui dentre outros gêneros, filme de kung fu (O Tigre e o Dragão), de guerra civil (Cavalgada com o diabo), de culinária (Comer, Beber, Viver).
Nada, porém, tão arriscado e fora do comum como este filme que tinha tudo para ser mera curiosidade e total fracasso de bilheteria. No entanto, estourou nas bilheterias de todo o Oriente e não foi tão mal assim quanto se temia na América do Norte (está com cerca de US$ 70 milhões de bilheteria, para um orçamento de 120 encarecido pelo uso do 3D e intensa animação digital, de tal maneira que chegou a ser indicado para o prêmio da categoria Annie). Depois de Scorsese, temos outro grande diretor tentando expandir as fronteiras da Terceira Dimensão em filme não comercial.
Mais abaixo falaremos sobre o fato pouco explorado aqui de que o filme é inspirado num livro de autor brasileiro. Por enquanto vamos agradecer o fato de que não foram outros diretores inadequados que fizeram o filme (M. Night Shyamalan, Alfonso Cuaron, Jean Pierre Jeunet, estiveram antes envolvidos). Menos sorte teve o ex- Homem Aranha Tobey McGuire (amigo de Lee de outros filmes) que fazia originalmente o papel do escritor que visita o Pi e eventualmente irá escrever o livro. Depois de tudo feito, Ang Lee achou que o fato dele ser conhecido demais iria desequilibrar o resultado e foi substituído por Rafe Spall (filho do ator britânico característico Timothy Spall).
O problema básico do filme é que ele leva certo tempo para começar, passando um período enorme em explicações e conversas. A ação só começa a ocorrer por volta dos quarenta e cinco minutos de projeção (calculo sem precisão) com o naufrágio e dali em diante o filme esquenta (para novamente encerrar com mais exposição e explicações quando a história parecia resolvida. Aí da uma virada que o complica. Acho que isso leva o filme a não ser indicado para crianças, ainda mais pequenas. Elas podem ser divertir com o tigre, mas não vão suportar a primeira parte). Na verdade é bom esclarecer que por essas e outras, também não é um filme para o público que procura apenas diversão e passatempo.
A trama é complexa e sujeita a discussões, assim como o fato de ter um muito forte teor religioso. Já que Pi se declara indiano de origem e formação, católico porque gostou da história do filho de Deus se sacrificar pelos humanos e finalmente muçulmano por graças de Ala. Ou seja, no ardor da tragédia e sucessivos perigos, ele invoca com frequência a Deus que é louvado (o que pode agradar muitos, mas outros podem rejeitar o filme tanto pela amplitude de fés, quanto pela ênfase nela).
Foi meu amigo Claudio Erlichman quem me passou a informação (acrescentando que há entrevista inclusive no You Tube, do escritor Moacyr Scliar falando sobre o fato). De qualquer forma, a matéria que me mandou foi publicada antes em A Tribuna de Santos, por Alfredo Monte. Nele me baseio. Seria mais ou menos o seguinte. Scliar infelizmente já falecido era mesmo um grande escritor (eu o conheci pessoalmente, dizia que era meu admirador e eu garanti que o admirador era eu). E lia suas obras regularmente. Parece que o autor do livro Yan leu o livro de Scliar, Max e os Felinos, de 81, que tinha basicamente a mesma historia e se inspirou diretamente nela.
O brasileiro ficou sabendo disso e, no entanto, recusou-se a processar o outro, achando que era difícil e trabalhoso demais. Porém, não sei se precavido ou sincero, passou a colocar nas edições posteriores do seu livro uma referencia logo na primeira pagina, dizendo que realmente se inspirou em Scliar (diz que a “centelha de inspiração” deve realmente ao Scliar!). O que cá entre nos deveria ter feito isso antes e mais explícito. Mas continuou dizendo que tinha apenas lido uma resenha e não o livro. Essa controvérsia aconteceu quando Pi ganhou o importante Premio Booker.
No livro de Scliar se tratava de um judeu refugiado a caminho do Brasil (Scliar era judeu) e no barco salva vidas tinha que conviver com um felino, um jaguar no caso de Scliar, um tigre de bengala, no de Yan. E este afirmava que sua intenção era fazer uma alegoria sobre o nazismo e o abuso do poder.
O autor do artigo não acha que tenha havido plagio dizendo que o livro de Yan explora melhor o assunto mas fiquei na duvida, de uma coisa, de quem é o nome do navio cargueiro japonês que aqui é Tsimtsum que é na verdade o nome hebreu usado no século 16 pelo cabalista Isaac Luria para designar Deus na criação das coisas. No filme, Pi adulto menciona de passagem que da um curso de Kabala, mas no livro afirma baseado nesse Luria.
Se bem que o filme aproveita também outras jogadas com nomes , já que Pi vem do nome que lhe foi dado ao nascer, o de Piscine Molitor que é o nome de uma famosa piscina publica de Paris, que fica perto do Bois de Boulougne (alias resulta numa das cenas mais bonitas da fita). A piscina caiu em desuso mas em 1990 virou monumento histórico.
Quem faz Pi jovem é um brilhante novato que tem uma grande interpretação embora não tenha passado realmente perigo com o tigre, que a maior parte do tempo foi criado por CGI (apenas algumas poucas cenas foram com um tigre real, e naturalmente a mesma coisa com a hiena, o orangotango e o rato que também estão no barco). Saber desses e outros detalhes apenas acrescentam o prazer de ver o filme (como saber que a ilha carnívora tem a forma do deus indiano Vishnu deitado) que custa a arrancar mas é sempre envolvente, inquietante e desafiador.
Chega questionando as religiões, discutindo relações familiares ou mera historia de sobrevivência em alto mar. Lee não se furta de interromper a narrativa para fazer devaneios simplesmente poéticos com as estrelas, os peixes voadores ou outros vindo das profundezas ou então se fixar no enfrentamento do pesadelo, como domar um tigre num barco salva vidas! Como marcar o território?
Toda a história é narrada pelo já maduro Pi (feito por Irrfan Kahn, de Quem quer ser um milionário? O espetacular Homem Aranha e mais 111 filmes!) e quem tem uma participação pequena, mas num personagem muito falado que é o cozinheiro francês Gérard Depardieu.
Sabem o que deixa feliz... É que o cinema de hoje em dia tenha ainda espaço para uma fabula filosófica como Pi, alegórica ou não, imperfeita que seja. Mas sem dúvida um dos poucos e grandes filmes interessantes do ano.