Crítica sobre o filme "Boas-Vidas, Os":

Eron Duarte Fagundes
Boas-Vidas, Os Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 13/04/2011

No primeiro enquadramento de Os boas-vidas (I vitelloni; 1953), o filme que catapultou a fama do universo cinematográfico de Federico Fellini, o que o espectador vê primeiro são as sombras das cinco personagens centrais da narrativa, os ditos inúteis ou vadios do título original; depois, enquanto descem os créditos, vão aparecer as criaturas saídas da sombras, jovens cantando como bêbados. É como se, ao exercitar sua memória de interiorano, Fellini quisesse exorcizar as sombras de sua fantasia; apalpando as sombras, o realizador concretiza o passado em imagens.

Os boas-vidas se articula um pouco como uma crônica de interior. Os cinco amigos do centro narrativo são tipos característicos do mundo interiorano e, como os protótipos balzaquianos, cabem às vezes em algumas definições reduzidas: o galanteador, o intelectual, o observador melancólico, todos tratados com um humor italiano de fácil comunicação, mas a que a arte de Fellini acrescenta toques mágicos muito pessoais. Há quem prefira separar a primeira fase de Fellini (que se encerraria com As noites de Cabiria, 1957) da segunda fase (que se iniciaria com a grandiloqüência de A doce vida, 1960), atribuindo à primeira escrúpulos realistas e documentais e à segunda um mergulho na loucura fantasiosa e barroca;embora isto transpareça no teor das imagens (é difícil pensar na geração de imagens de A cidade das mulheres, 1980, como parente daquilo que se vê em Os boas-vidas), há um artificioso didatismo nesta divisão; Os boas-vidas se articula como crônica, porém se desenvolve com elementos feéricos muito fellinianos —o casal que dispara a dançar no meio da rua, assim do nada; a longa sequência de provocações, libido e máscaras do carnaval de interior; os matizes madrugadores ou boêmios da fotografia; a escultura de um amigo roubado pelos vadios e uma freira arredia e um padre trepado numa árvore já se valendo dos símbolos católicos mas de maneira paradoxalmente pagã, como recuando até os antigos romanos (que Fellini filmou num de seus filmes mais ásperos, Satyricon, 1969). É possível hoje estudar a evolução do cinema de Fellini com uma dinâmica diversa dos conceitos estratificados e perceber o coeficiente de originalidade que se perpetuou em seus filmes desde os começos.

Fellini saltou de Honoré de Balzac (Os boas-vidas e seus tipos que imitam a vida mas não propriamente se submetem a esta imitação) para Marcel Proust (a demência de tempo e espaço de Oito e meio, 1963). Certa vez questionado sobre ser o Proust do cinema, Fellini revelou nunca ter lido o romancista francês, e mais: as deficiências de cultura literária de sua formação. Na fase de Os boas-vidas era a baixa literatura que influenciava o cinema de Fellini: as fotonovelas, a que Fellini se dedicou num determinado período; mas Fellini, em Os boas-vidas, se vale do melodramático com descaramento porém sarcasmo poético. No entanto, a aproximação entre a estética de Proust e a de Fellini se dá em vários sentidos, desde Os boas-vidas. Como Proust, Fellini parece às vezes documentar, mas logo que se vê que “documentar-se, no processo de Marcel Proust, não consistia apenas em ver, observar, guardar na memória seres e objetos, mas em impregnar-se deles, renovar a contemplação, a audição, o tato, tantas vezes quantas necessário para uma sensação completa.” (Álvaro Lins em A técnica do romance em Marcel Proust, 1951). Não é isto o que faz Fellini em Os boas-vidas documentar-se impregnando-se do que documenta e assim transfigurando, pelo cinema, o mundo? Na sequência final a imagem de Moraldo no trem despedindo-se do interior é alternado com imagens das personagens que ficaram no interior, o ruído do trem une a imagem do trem às outras imagens. Ao retirar o passado das sombras, Fellini tem o dom de criar as imagens deste passado, que são as que borbulham na sequência final.