No começo de Contrastes humanos (Sullivan’s travels; 1941), do americano Preston Sturges, vemos uma cena de ação que culmina com dois homens engalfinhando-se meio na galhofa da imagem; no fim da sequência vemos escrito: “FIM”. Terminou o filme, começando pelo seu final? Nada disto: um grupo de profissionais de Hollywood estava analisando o resultado do filme de um prestigiado diretor; é uma cena de set de filmagem dentro do filme.
Contrastes humanos põe em xeque as relações do cinema hollywoodiano com a realidade social da América. Até que ponto o cinema de Hollywood representa mesmo a América. O crítico francês André Bazin, no fim da década de 40, anotou num artigo sobre o filme de Sturges: “Talvez pela primeira vez Hollywood ousou colocar-se em cena opondo-se à vida americana.”
A história contada em Contrastes humanos mostra um cineasta de comédias que decide fazer um drama sobre a miséria e, nada sabendo sobre o assunto, resolve mergulhar nos meios miseráveis americanos de seu tempo. Entre as idas e vindas, acaba sendo roubado e espancado por um mendigo e dado como morto. Voltando no final a Hollywood, depois de ter visto o riso escancarado do povo carcerário numa sessão de cinema (desenho animado) numa igreja, o diretor conclui que rir é o melhor remédio e rejeita o drama encomendado pelos produtores, tornando às comédias, sob a evocação das caras ridentes de seus ex-companheiros de cárcere. É um pouco como se Sturges defendesse seu gênero preferido, a comédia. E é uma defesa feita com a eficiência duma argumentação cinematográfica.