Crítica sobre o filme "Face a Face":

Eron Duarte Fagundes
Face a Face Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 26/06/2012

Em Face a face (Ansikte mot ansikte; 1976), um filme da fase mais psicanalítica do cineasta sueco Ingmar Bergman, há uma cena que refaz uma outra cena de um antigo filme do realizador. Na segunda parte do filme, que se debruça mais sobre sonhos (especificamente pesadelos), a protagonista, a psiquiatra Jenny Isaksson, circulando por entre seus fantasmas, vestida de vermelho, vê a si mesma dentro dum caixão, um cadáver que a espelha também vestido de vermelho. Esta peça gótica de mostrar uma personagem que se vê numa imagem paralela em estado de cadáver foi extraída dum trecho de Morangos silvestres (1958), uma obra-prima de Bergman; neste clássico o professor Isaak Borg, caminhando por ruas sombrias, dá com uma carroça e, aterradoramente, vê despencar desta carroça um caixão; quando se aproxima, vê que o cadáver no caixão é ele mesmo, Isaak Borg.

Face a face não está entre as realizações mais arrebatadoras de Bergman, mas concentra em si o universo característico, de tensões características do diretor nórdico; e certamente os aspectos de sua realização iluminam certos entendimentos do cinema de Bergman — como uma luz constante (mesmo que sombria), o que está em Face a face influencia a própria ideologia que se possa erigir em torno daquilo que Bergman trouxe para o cinema. Na introdução do fundamental texto-roteiro que Bergman nos anos 70 lançou juntamente com o filme (o texto nas livrarias, o filme nas salas de exibição), há duas expressões que marcaram a maneira de ver o cinema de Bergman — é curiosa esta ação crítica de Bergman sobre seus próprios críticos. Uma destas expressões é a dor de dente indefinida (uma angústia qualquer) que Bergman diz não poder caracterizar fisicamente: uma dor de dente espiritual. É esta dor de dente que leva Bergman a fazer filmes tão desesperados. É esta mesma dor de dente, com a qual Bergman se identifica, que aproxima Jenny de sua tentativa de suicídio afundando-se em medicamentos e do mergulho nos pesadelos. A outra expressão é estabelecer uma personagem como uma “analfabeta espiritual”: “Apesar de seus grandes conhecimentos, ela é, no mais alto grau, uma analfabeta espiritual.” Que expressões poderiam definir o que Bergman radiografa em todos os seus filmes, senão a dor de dente e o analfabetismo espirituais?

As relações de Jenny, a personagem central, com as pessoas em torno são acompanhadas por Bergman com seu habitual rigor hipnótico. Há os avós de Jenny; e é particularmente tocante a cena ao final em que o avô parece estar morrendo diante da cumplicidade da avó e Jenny observa por algum tempo, junto à porta, a intimidade intensa daquela despedida de um casal de velhos. No outro extremo da vida, também uma cena quase ao final, Jenny conversa com sua filha adolescente Anna: em pegadas mais leves e lentas aí Bergman, no diálogo entre uma mãe e sua filha, parece estar preparando terreno para um de seus trabalhos seguintes, Sonata de outono (1978), também com Liv Ullmann como um dos centros narrativos (em Face a face ela é o próprio centro, que em Sonata de outono ela divide com a atriz sueca Ingrid Bergman). Em Face a face Liv conduz com nervuras cinematográficas as intenções de Ingmar Bergman, com quem teve relações semimatrimoniais alguns anos antes desta realização.