Crítica sobre o filme "No Decurso do Tempo":

Eron Duarte Fagundes
No Decurso do Tempo Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 23/05/2012

Quase no fim de No decurso do tempo (Im lauf der zeit; 1976), a primeira obra-prima dirigida pelo alemão Wim Wenders, Robert (vivido por Hanns Ziszhler) se aproxima dum garoto, numa estação de trem, e pergunta o que este garoto está escrevendo no caderno. O menino responde que está anotando tudo o que vê na estação: o céu, a nuvem, o trilho, o trem, o homem com a mala. O cinema de Wenders (e em No decurso do tempo num de seus graus máximos) age um pouco como este menino ao escrever: a câmara documenta o que vê, sem uma aparente preocupação prévia, quase como um documentário que se organiza com sua própria improvisação; não há a ideologia apriorística do neo-realismo italiano ao documentar a vida, estamos mais próximos daquele jeito do japonês Yasujiro Ozu de ir divagando sobre o mundo, mas Wenders cria seu próprio espírito cinematográfico. Muitas vezes o naturalismo bruto de Wenders é espantoso e só é metamorfoseado por sua aguda elaboração formal: o ator Rudigler Vogler (que interpreta Bruno, o operador de cinema que perambula com seu caminhão pelo interior germânico) defeca diante da câmara, no início do filme, num plano médio fixo; Zischler (o Robert), numa cena do final, num primeiro plano de perfil, está urinando desabusadamente; são expressões do corpo dos atores que vemos ao vivo (o cocô, o mijo) que ligam naturalisticamente o intérprete à personagem. Como nas singelas e objetivas frases do menino abordado por Robert no fim do filme.

Quando No decurso do tempo foi exibido nos anos 70 em sessões do Instituto Goethe, os americanófilos de plantão apontaram algumas semelhanças entre o processo (que chamavam amadorístico) de Wenders e as composições mais profissionais do realizador norte-americano John Ford: cenários inóspitos e desolados, o gosto pela amizade viril, as significações meio apagadas da mulher (a caixa de cinema com quem Bruno se envolve a medo, as referências ocultas e longínquas nos diálogos a esposas ou namoradas). É certo que Ford deve ter sido muito visto pelo menino Wenders; mas é complicado pensar que a dinâmica criada pelo cineasta alemão se coaduna com o espetáculo proposto nos faroestes de Ford; pense-se em Ford adulterado por Ozu, e ainda estaríamos longe destes planos únicos e maravilhosos erigidos por Wenders em No decurso do tempo.

A narrativa de Wenders é uma intensa peregrinação cinematográfica pelas cidades interioranas da Alemanha. É profundamente teutônico e profundamente wenderiano, antes das mutações que Hollywood trouxe de maneira problemática em Hammet (1982) e conciliando admiravelmente opostos em Paris, Texas (1984). Trata do cinema, como trataria depois em O estado das coisas (1982); se este se voltava para a paixão de filmar, No decurso do tempo centra-se na paixão de projetar e ver filmes. Mas a metalinguagem invadida por Wenders está longe das possibilidades de comunicação com o público de Splendor (1988), do italiano Ettore Scola, e de Cinema Paradiso (1988), do também italiano Giuseppe Tornatore; Wenders prefere uma comunicação interna com seu próprio filme, que pode atingir certos lados mais elaborados do espírito do observador.

No rol de citações cinematográficas, inseridas sutilmente no corpo da narrativa, podemos detectar uma ao cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer (num jornal que uma personagem está lendo, a câmara mostra a manchete: “Como respeitar sua mulher”, referência a um filme mudo de Dreyer) e outra ao italiano Michelangelo Antonioni (na seqüência final, lemos no frontispício de um cinema: Hoje no Cine a “Parede Branca”). Desenvolvendo com agudez todos os tópicos de seu filme, Wenders faz de No decurso do tempo um dos marcos de seu cinema.