Crítica sobre o filme "Zelig":

Eron Duarte Fagundes
Zelig Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/01/2005

Quando Zelig (1983), do norte-americano Woody Allen, foi exibido nos cinemas em sua época, a década de 80 do século XX, foi recebido como a mais estranha realização do cineasta, aquela em que ele fugia bastante a suas influências européias, o sueco Ingmar Bergman, os italianos Michelangelo Antonioni e Federico Fellini e o francês Eric Rohmer; mas em anos tão sisudos e contorcidamente políticos quanto aqueles, sua brincadeira com o documentário cinematográfico, que seu filme de ficção mimetizava admiravelmente (assim como sua personagem mimetizava o ambiente em que se encontrava), foi tido como uma curiosa demonstração de talento. Vinte anos depois, para o cinemaníaco que se dispuser a rever esta obra-prima curtíssima (setenta e oito minutos), Zelig assume proporções extraordinárias, parece tão bom quanto Moby Dick (1851), o romance de Herman Melville que Leonard Zelig, o protagonista do filme de Allen, nunca leu e só o começa pouco antes de morrer sem ter a perspectiva de conhecer seu final; e tão cinematograficamente engenhoso quanto Cidadão Kane (1941), o semidocumentário do norte-americano Orson Welles que parece ser a referência mais imediata de Zelig.

O filme de Allen simula um documentário. Trata de um homem-camaleão que teria vivido nos anos 20 na América, sido muito famoso por sintetizar as criaturas que o cercavam (chinês entre os chineses, gregos entre os gregos, escritor entre os escritores, obeso entre os obesos, psicanalista entre os psicanalistas) e hoje teria sido curiosa e implacavelmente esquecido. Allen monta seu falso documentário com habilidade incrível. Sua personagem, vivida pelo próprio diretor, muitas vezes acompanhada de sua psicanalista, Eudora Fletcher, interpretada por Mia Farrow, esposa de Allen nos anos 80, é vista contracenando com pessoas de verdade do mundo artístico e político da época. Allen se vale igualmente de depoimentos de figuras reais ainda vivas , como os escritores Susan Santag e Saul Bellow, que falam de Zelig com extrema seriedade, dando uma cômica credibilidade à mentira documental armada. Personagem e filme se encontram em seus símbolos: Zelig, a criatura, quer parecer-se com as figuras em torno para ser aceito e amado; Zelig, o filme, quer parecer-se com um documentário para que sua reflexão sobre a realidade americana seja aceita e amada.

Hoje, quando o cinema do iraniano Abbas Kiarostami utiliza artifícios documentais de maneira muitas vezes ficcional, a revolução de Zelig se torna ainda mais atual: seu filme é a materialização da tese de que o documentário e a ficção estão mais próximos do que se pensa.