Crítica sobre o filme "Trapaça, A":

Eron Duarte Fagundes
Trapaça, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 18/08/2004

Há uma ligação muito forte entre a amargura final da personagem de Anthony Quinn em A estrada da vida (La strada; 1954) e o abandono irreversível a que é jogado o velho golpista de quarenta e oito anos nos momentos conclusivos do filme seguinte do italiano Federico Fellini, A trapaça (Il bidone; 1955): se a criatura de A estrada da vida amarga uma ponta de culpa rolando-se na areia à lembrança do descaso com que abandonou sua patética companheira de apresentações de variedades de rua, o trapaceiro, que na seqüência final de A trapaça tenta golpear seus camaradas de esperteza, é agredido e abandonado à beira duma estrada, este trapaceiro está expiando desesperadamente solitário seus pecados numa agonia que Fellini filma com agudo senso de precisão e ironia.

Ainda filiado ao neo-realismo, com marcações cênicas mais ou menos habituais naquela escola, A trapaça realça a graça de filmar de Fellini, especialmente em algumas cenas de dança, tudo muito ajudado pela música de Nino Rota. O espectador sente-se hipnotizado diante de algumas roliças mulheres fellinianas que se soltam neste eterno baile de imagens e sons que é qualquer filme de Fellini.

A estrutura de roteiro e idéias, conquanto ainda singela, já revela a capacidade de fragmentação narrativa de Fellini. Ele vai acumulando os golpes de suas personagens centrais, desde quando estão travestidos de religiosos no início para enganar as velhinhas de um asilo até o última malandragem exposta pela narrativa, a aplicação do conto num pai de família em que uma filha é semiparalítica; Fellini vai juntando os episódios para expor as dificuldades da vida na Itália nos anos 50, um retrato social neo-realista. Os golpistas não escapam aos olhares de suas famílias: um deles, casado, é descoberto em sua profissão escusa quando leva sua mulher a uma festa de fim de ano do grupo, e os gestos de exprobração de Giulietta Masina para seu par na saída da comemoração é bastante sem volta; o velho golpista, o abandonado no final à beira da estrada, descobre-se para sua filha quando a leva a um cinema e dá com uma de suas vítimas; o choro da filha adolescente ao espiar o pai ser conduzido num carro de polícia é igualmente sem volta. Cedo ou tarde, a máscara cai, mesmo aquela usada por uma personagem de Fellini.

Amargo, às vezes desesperado em sua visão de mundo, Fellini, é claro, está longe do existencialismo soturno do italiano Michelangelo Antonioni; mas A trapaça descortina novamente seu poder de sedução diante do observador.