Rodado na Inglaterra pelo cineasta polonês Roman Polanski, no início de sua carreira, Repulsa ao sexo (1965) é um trabalho cheio de brilho e inquietação; seu rigor formal acaba por exigir do espectador uma posição crítica e cerebral, uma nova maneira de olhar a realização fílmica. O comportamento burguês diante do sexo é o tema da fita; mas a obra de Polanski não timbra em aprofundar anotações sociológicas, preferindo uma escavação bastante cruel e devastadora da criatura humana. Carol, vivida por uma jovem, bela e perversa Catherine Deneuve, é a manicure em torno da qual Polanski exerce sua arte de fascinar o assistente; atormentada por dificuldades e fantasmas sexuais, Carol perfaz um itinerário de loucuras através dum universo tenso e sombrio. A atmosfera fechada e opressiva do filme resulta da mestria de Polanski em concentra toda a base da ação dramática dentro do apartamento da irmã de Carol, interpretada por Yvonne Fourneaux, que em As amigas (1955), do italiano Michelangelo Antonioni, era uma das desesperadas personagens que circulavam por aquelas imagens geométricas; a respiração difícil do espectador diante da linha narrativa que surge assustadoramente na tela é um dado bastante raro de encontrar no cinema atual, mas parece tratar-se duma característica comum a filmes dos anos 60 de feição intelectual, como A noite (1960), de Michelangelo Antonioni, O silêncio (1963), do sueco Ingmar Bergman, A grande testemunha (1966), do francês Robert Bresson, ou ainda A baía dos anjos (1963), do francês Jacques Démy (ressalvados os condimentos suavizadores da nouvelle vague). Muitos dos efeitos maravilhosos que cruzam as imagens de Repulsa ao sexo se devem à forma como o cineasta utiliza o caráter interpretativo de sua atriz principal, com aquela sexualidade gelada, a inexpressividade do rosto, os cabelos loiros, um andar de pouca estilização e certos cacoetes infantis como o de passar a mão na pele junto ao nariz; o olho frio e duro da Deneuve aparec num picotado plano fotográfico, na abertura do filme, conduzindo sobre si a apresentação dos créditos iniciais, enquanto ao final da fita um movimento da zoom, fechando uma panorâmica, vai deter-se, na última imagem, novamente no olho da atriz, agora esfumaçando-se numa fotografia de família. Um jogo perfeito de sordidez, desespero e sangue é o que Polanski executa neste que é um de seus trabalhos mais fortes em sua tentativa de desequilibrar os alicerces de nossa educação burguesa.
A difícil digestão conferida ao estilo narrativo de Repulsa ao sexo o diferencia de Tess (1979), um belo melodrama do cineasta que andou caindo no gosto do público habitual do cinema; claro que o sangue e a desesperação também surgem em pequenas doses em Tess, mas tudo se harmoniza em sutilezas românticas. Repulsa ao sexo igualmente não está ligado ao demonismo direto de O bebê de Rosemary (1966) ou ao sarcasmo fantástico de A dança dos vampiros (1967), embora haja uma seqüência em que mãos de defuntos (os homens que tentaram violentá-la e foram mortos por ela?) a acariciam, num notável clima de pesadelo sobrenatural.
Um filme que instiga o lado sado-masoquista do espectador, Repulsa ao sexo tem cenas de sangue de que Polanski extrai uma inusitada conotação erótica, passada ao observador com uma carga estranha e violenta. Quando Carol espanca o requestador que a vai visitar, o corpo atingido cai, a mão do homem treme num último estertor (um detalhe em grande primeiro plano) e, em seguida, a câmara mostra o sangue que escorre ao lado da orelha. Carol, perturbada por seus devaneios, sangra o dedo de uma de suas clientes. E assim os blocos narrativos se sucedem livremente, alternando-se com momentos (breves) mais abertos em que a Deneuve passeia na rua, ao som dum fundo musical lúgubre; estes instantes de tênue descontração aliviam o peso quase insuportável da malvadeza polonesa do famoso cineasta.
Muito superior a A faca na água (1963) e Armadilha do destino (1966), dois antigos Polanski que também buscavam um sentido de narrativa curioso e original, Repulsa ao sexo edita em imagens tudo aquilo que um espírito turbulento e de feiticeiro poderia desencadear sobre a tela. Um filme sobre a timidez, a bela obra de Polanski é um longo e descontraído esgar que vai ter, em suas seqüências finais (a virgem mata os machos e a chegada dos seres normais à “mansão dos horrores”), a um vômito moral de grandes proporções.
(Texto escrito originalmente em 02 de abril de 1984, quando descobri a obra-prima de Polanski no cinema Bristol de Porto Alegre: os arroubos verbais vão por conta de meus vinte e oito anos de então).